Des. Ricardo Dip
Na sequência dos vários tópicos deste capítulo «fontes do direito notarial e registral», estamos agora quase a concluir a breve referência ao tema da «lei», que consideramos lato sensu, ou seja, como toda norma emanada do poder político, incluindo, pois, uma série de «tipos» ou «modos legislativos».
Indica-os, para nossos dias, o art. 59 de nossa Constituição política de 1988: (i) as emendas à constituição (a própria constituição é uma lei em sentido amplo); (ii) as leis complementares; (iii) as leis ordinárias; (iv) as leis delegadas; (v) as medidas provisórias; (vi) os decretos legislativos; (vii) as resoluções; a esses tipos ainda podem adicionar-se (viii) as portarias, (ix) os provimentos e (x) as sentenças normativas. E a isso ainda poderíamos agregar as recomendações (que não indicam normas em acepção própria, mas diretrizes, indicações de vontade política).
A correlação desses vários tipos ou modos de «lei» com os diversos segmentos do direito não é uniforme. O direito penal, por exemplo, exige uma legalidade estrita; pode talvez a isso moldar-se também o direito tributário. Mas é muito diferente a situação das notas e dos registros públicos, cuja legalidade é fontalmente mais elástica, admitindo-se sua disciplina mediante modos ou tipos diversos da lei stricto sensu (ou seja, da lei em sentido canônico).
Exatamente neste passo entra em cena um tema instigante: o da possibilidade jurídica de que normas administrativo-judiciárias disciplinem a atividade notarial e registral.
Saber da viabilidade jurídica de o poder judiciário emanar normas para as notas e os registros públicos supõe sempre a consideração da ordem positiva do direito, sobretudo o que dispõe a constituição acerca da competência legislativa.
O caso brasileiro atual parece de fato atenuar −quando não mesmo suprimir− uma controvérsia teórica a partir de uma realidade em curso, qual a da emanação rotineira de normas judiciais para o extrajudicial, normas que provêm não apenas de corregedorias locais, mas também de estaduais e até mesmo da Corregedoria Nacional de Justiça.
A disputa no plano teórico põe-se no contraste entre
• a afirmação da potestade legislativa do judiciário −calcada na compreensão præter litteram do art. 236 da Constituição federal de 1988 e, extensivamente, do § 2º do art. 5º da Emenda constitucional 45, de 30 de dezembro de 2004: «Até que entre em vigor o Estatuto da Magistratura, o Conselho Nacional de Justiça, mediante resolução, disciplinará seu funcionamento e definirá as atribuições do Ministro-Corregedor»; e
• a compreensão estrita da lista constitucional de competências legiferantes e do texto do referido §2º do art. 5º da Emenda constitucional 45.
Em meio a ambas essas posições, há uma corrente intermédia, sobre a qual diremos algo lá à frente.
A tese ampliativa, que trata de concluir com apoio na parte final texto do §1º do art. 236 da Constituição nacional −«Lei regulará as atividades, disciplinará a responsabilidade civil e criminal dos notários, dos oficiais de registro e de seus prepostos, e definirá a fiscalização de seus atos pelo Poder Judiciário»−, sustenta que a potestade legiferante é ínsita ao conceito de fiscalização.
Para mais, propõe, com amparo na norma do § 2º do art. 5º da Emenda constitucional 45, a possibilidade de o Conselho Nacional de Justiça atribuir ao Corregedor Nacional poderes legislativos.
Em acréscimo, a tese favorável à emanação de normas judiciais para o extrajudicial pode acenar ao que dispõe −para o fim de atender ao previsto no § 1º do art. 236 da Constituição nacional− o item XIV do art. 30 da Lei 8.935, de 18 de novembro de 1994, preceituando devam os notários e registradores «observar as normas técnicas estabelecidas pelo juízo competente».
Dito isso, abramos aqui um largo parêntesis a fim de examinar um exemplo emblemático acerca da normatização judicial do extrajudicial.
Publicou-se no Diário da Justiça de 4 de setembro de 2023 uma consolidação regulativa, acompanhando o Provimento 149, de 30 de agosto anterior, expedido pelo então Corregedor Nacional de Justiça, Ministro Luis Felipe Salomão, consolidação essa que, com o título Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça - Foro Extrajudicial, tem por explícita finalidade a de regulamentar as atividades notariais e de registro.
Já em sua exposição de motivos, esse Código indica seu caráter de consolidação: «Trata-se de consolidação de todos os atos normativos do Corregedor Nacional de Justiça, relativamente aos serviços notariais e registrais». O escopo desse Código, lê-se na mesma exposição de motivos, é o de "eliminar a dispersão normativa atual", por dificultar as "consultas pelos usuários", dispersão que, prossegue o texto, é "potencialmente nociva à segurança jurídica, seja pela falta de sistematicidade, seja por dificultar a identificação de revogações tácitas, de uma norma por outra".
Esse novo Código hospedou, de início, somente os provimentos editados pelo Corregedor Nacional de Justiça: «Não foram incorporados −lê-se assim na referida exposição de motivos− o conteúdo de Resoluções, pois trata-se de atos de competência do Plenário do Conselho Nacional de Justiça". Igualmente, não se incluíram no Código "os atos de 'Orientação' e de 'Recomendação' expedidos pela Corregedoria Nacional de Justiça, seja porque a natureza jurídica desses atos é mais de recomendação do que de normas propriamente ditas, seja porque as orientações geralmente são esclarecimentos pontuais de temas já normatizados, seja porque várias orientações já se exauriram por terem sido dirigidas a uma ação pontual».
Houve, contudo, em alguns casos −assim o ressalta a exposição de motivos− a remissão a resoluções e a outras normas: «A ideia é que os cidadãos, os delegatários, os magistrados e os demais profissionais do Direito encontrem, neste Código Nacional de Normas, tudo de que o Conselho Nacional de Justiça dispõe em matéria de atos normativos relativamente aos serviços notariais e registrais, ainda que por meio de remissões». Trataremos de ver, na próxima explanação, para aqui fazer uma distinção relevante, o quanto, no plano formal, é de aplaudir a ideia de uma consolidação, assim a referiu a exposição de motivos do Código.