Fontes do direito notarial e registral (sexta parte)

                                               Des. Ricardo Dip

         Como ficou dito, a normativa constitucional é tida como a fonte cumieira no ordenamento jurídico positivo das nações, e essa asserção tanto pode admitir-se no âmbito da ideologia normativista, quanto na concepção clássica que reconhece a importância da constituição, mas não lhe confere o valor de fundamento último do direito.

         Como quer que seja, adote-se ou não a perspectiva formalista e voluntarista afirmada pelo constitucionalismo em voga, as normas constitucionais têm prevalência hierárquica sobre as previsões subconstitucionais.

         No que respeita ao direito notarial e registral, já o deixamos dito, a competência para a elaboração das leis é privativa da União (item XXV do art. 22 da Constituição brasileira).

         Sem embargo disso, não faltam algumas situações controversas.

         Exemplo disso deu a Lei paulista 17.649, de 7 de março de 2023, cujo art. 1º dispôs: «Ficam os cartórios com sede no Estado obrigados a disponibilizar, quando solicitados, certidões de óbito, de nascimento e de casamento em escrita braile».  

         Ou seja, o Parlamento do Estado de São Paulo legislou em matéria de registro civil das pessoas naturais.

         O Órgão Especial do Tribunal de Justiça paulista acolheu, entretanto, ação direta de inconstitucionalidade ajuizada pela Associação dos Notários e Registradores do Estado de São Paulo e declarou a invalidade dessa lei (processo 2073261-61.2023).

         Recolhe-se do acórdão correspondente:

«Tem-se aqui, em palavras de Canotilho, um «caso de tensão», porque se enfrentam competências legislativas, exigindo encontrar o que o mesmo Canotilho designou como «norma de decisão situativa» −ou seja, moldada às circunstâncias do caso (cf. Direito constitucional e teoria da constituição, ed. Almedina, Coimbra, 1998, p. 1.109).

O diagnóstico do enfrentamento de competências legislativas, no quadro em exame, põe, de um lado, a previsão de que os estados membros possam, de consonância com a ordem constitucional que vigora entre nós, legislar tanto de maneira concorrente (inc. XIV do art. 24 da Constituição federal), quanto de modo suplementar (§ 2º do mesmo art. 24), em matéria de "proteção e integração social das pessoas portadoras de deficiência".

De outro lado, põe-se a indicação da competência privativa da União para legislar sobre "registros públicos" (inc. XXV do art. 22 da Constituição nacional).

Saliente-se que a lei objeto −relativa à publicidade formal registrária− integra, assim, o segmento do direito dos registros públicos, a tanto bastando ver que a expedição de certidões, núcleo da lei adversada, vem referida ao largo de toda a vigente norma geral dos registros públicos (Lei 6.015, de 31-12-1973: v.g., arts. 14, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 30, 32, 47, etc.; no mesmo sentido, em doutrina, a título ilustrativo: Serpa Lopes, Tratado dos registos públicos, ed. Freitas Bastos, 4.ed., Rio de Janeiro -São Paulo, 1960, vol. I, p. 19 et sqq.; Carlos Ferreira de Almeida, Publicidade e teoria dos registros, ed. Almedina, 2.ed., São Paulo, 2022, p. 99 et sqq.).

Não custa dizer que a classificação das certidões do registro como documentos secundários resulta de considerar-se sua posterioridade lógica e cronológica em relação aos documentos principais (assentos no registro civil das pessoas físicas, matrículas no ofício imobiliário e no registro civil das pessoas jurídicas, transcrições no registro de títulos e documentos). Mas as certidões não são documentos de relevância jurídica secundária, tanto que −mediante a fides attestationis que lhes é própria− têm o mesmo valor jurídico dos originais (cf. art. 217 do Código civil brasileiro: "Terão a mesma força probante os traslados e as certidões, extraídos por tabelião ou oficial de registro, de instrumentos ou documentos lançados em suas notas").

(…)    Vê-se na situação destes autos um conflito que envolve o tratamento relativo a um direito fundamental −mais exatamente, um direito fundamental particular, cujo núcleo é a dignidade da pessoa portadora de deficiência (cf. Jorge Miranda, Manual de direito constitucional, ed. Coimbra, 2.ed., Coimbra, 1998, tomo IV, p. 80) e, de modo contraposto, um fim de interesse geral (o registro público).

Não há hierarquia formal −no âmbito das regras− em nossa Constituição, entre essas duas competências legislativas, e o fato do exercício de uma delas beneficiar um direito fundamental não acarreta, por si só, sua superioridade sobre outra que se exercite em favor do interesse geral da sociedade. Com efeito, os direitos fundamentais −sequer o mais elevado deles, que é o direito à vida− não são ilimitados, podendo subalternar-se, em dadas circunstâncias, ao interesse comunal.  Por outro lado, já o critério principiológico da prevalência do interesse aparentaria, prima facie, sinalizar, no caso dos autos, o benefício da preferência competencial da União, à míngua de avistar-se alguma peculiaridade regional que pudesse justificar o primado da competência legislativa do Estado de São Paulo.

Mais ainda: tenha-se em conta que o objetivo de encontrar uma norma afeiçoada às circunstâncias não deve, contudo, reduzir-se ao caso concreto, como se não houvesse um critério ou princípio geral para nortear a solução, admitindo-se, então, apenas um casuísmo autorreferencial.

É possível, parece, buscar um critério geral para a dirimição do enfrentamento das normas.

Empresta-se aqui ainda uma vez uma referência de Canotilho, que fala na «topografia dos conflitos».

Que temos, a propósito? Uma lei estadual que, visando à proteção de pessoas com deficiência, emana regra que, primeira e diretamente, incide no registro público −para cuja disciplina há reserva privativa de competência da União.

Consideremos agora −observada rigorosamente o mesmo parâmetro da situação topográfica do conflito em exame− uma outra lei estadual (hipotética, decerto), que também tenha por fim a proteção de pessoas com deficiência, expedindo norma que, primeira e diretamente, atue no campo do processo civil ou do processo penal, cujas leis são de competência privativa da União (inc. I do art. 22 da Constituição federal). Cogitemos, à luz dessa hipótese, de um exemplo concretizador −que é propositadamente caricatural, para melhor pôr à mostra o problema: uma lei estadual, dirigida a proteger pessoas com deficiência de visão, emissora de regra que, nos processos de que elas participem, imponha seja feito o julgamento dos recursos na sala de estar da residência dessas pessoas. Ou ainda: uma lei estadual que, com a mesma intenção protetiva, reduza, quanto às compras efetuadas pelos deficientes visuais, as alíquotas do imposto relativo à importação de produtos estrangeiros (matéria que é da competência legislativa da União: inc. I do art. 153 da Constituição federal).

É fácil a indução de que, com a prevalência das finalidades benignas (do legislador e da leimentes legislatoris legisque) de proteger direitos de pessoas portadoras de deficiência, já não haveria limite algum para conter a competência constitucional da edição de leis pelos estados membros.

Preservou-se nos exemplos acima a particular situação da «topografia do conflito» apreciado nestes autos: leis estaduais que, com o objetivo da consecução de um fim que quadra com a competência constitucional legislativa dos estados, atinge esse fim, entretanto, por meios, primeira e diretamente, intrusivos da esfera alheia da competência legiferante dos mesmos estados. Não se imunizam, porém, as competências legislativas concorrente ou de suplementação da observância dos espaços de reserva legiferante.

Admitida a tese da validade da lei em exame, evidencia-se o inconveniente: os estados membros −tanto buscassem um fim protetivo de pessoas com deficiência− poderiam (sem lei autorizadora de caráter complementar: par. único do art. 22 da Constituição federal) editar normas de direito civil, de direito penal, de direito do trabalho, de direito eleitoral, ou regras de processo civil e de processo penal, et reliqua.

A clivagem, portanto, para a solução do conflito competencial, no caso, não pode estar nas finalidades, porque isso implicaria a legitimação das extravasões de competência. O corte deve pôr-se no que primeiro e diretamente se atua na esfera dessa competência.

Em outras palavras, para beneficiar um fim jurídico não se admite adotarem-se, primeira e diretamente, meios injurídicos. Ou seja, o fim não justifica os meios. Diversamente, estaríamos diante de uma espécie de «maquiavelismo legístico».

Um exemplo, em contrário, de norma estadual válida que, com o fim de proteção de pessoas com deficiência, não deixou, contudo, de repercutir na atividade dos registros públicos, dá-nos o próprio Estado de São Paulo com sua Lei 12.907, de 15 de abril de 2008, que consolidou a legislação paulista relativa à pessoa com deficiência. Com nela prever-se a acessibilidade física aos locais de atendimento público, incluídos, pois, os das atividades dos registros, essa lei somente reflexamente (é dizer, não primeira, nem de modo direto) interferiu no exercício das funções registrais. Uma coisa, pois, é editar uma normativa referente à atividade típica registral (v.g, a expedição de certidões); outra, um ato normativo que diga respeito a atividades atípicas do registro (atividades burocráticas, estatísticas, etc.; neste sentido, p.ex., o que se decidiu pelo Pleno do STF ao julgar-se a ADI 903, Rel. Min. Dias Toffoli, j. 22-5-2013, processo a que se reportou o voto do eminente Des. Notarangeli; cf. também o art. 27 da Lei paulista 10.705, de 28-12-2000, que prevê: "O oficial do Registro Civil remeterá, mensalmente, à repartição fiscal da sede da comarca, relação completa, em forma de mapa, de todos os óbitos registrados no cartório, com a declaração da existência ou não de bens a inventariar").»

         Prosseguiremos.