Des. Ricardo Dip
Prosseguindo no largo capítulo sobre as fontes do direito notarial e registral, depois de termos examinado a fonte constitucional, passaremos agora a apreciar, sempre com a brevidade possível, o tema de uma específica fonte normativa subconstitucional, que é a lei.
Que é lei? Tratemos de sua etimologia e de suas definições semântica e real, advertindo que a resposta a essa indagação −que é lei?− parece deva prudentemente passar por uma discussão acerca do discrimen entre a mesma «lei» e o «direito».
Etimologicamente, o vocábulo «lex» não é isento de controvérsias. Por exemplo, S.Tomás de Aquino disse que lex, legis, provém de ligando −dicitur enim lex a «lignado», quia obligat ad agendum), mas, depois, o mesmo S.Tomás referiu-se ao entendimento de S.Isidoro de Sevilha, nas Etimologias, nas quais se ensinou que lex derivaria de legendo, quia scripta est; daí vem que tenha S.Tomás extraído a ideia de uma promulgação continuada da regra (semper eam promulgat).
Parece razoável advertir uma conciliação possível entre esses conceitos: S.Tomás refere o conteúdo, o actum, e, diversamente, S.Isidoro, o texto, o dictum. A propósito, Ernout e Meillet sustentam que a lex significava, diferenciando-se dos costumes, uma convenção (mos, moris) uma convenção textualizada por escrito, é dizer, documentada. Há outras indicações em Cícero, para quem lex deriva de ēligo, ēligis, ēligere, ēlēgi, ēlectum (escolher, eleger, separar); ou do grego nomos (do verbo nemo: distribuir); ou ainda do hebreu thora (do verbo thero: ensinar).
Nada obstante já houvesse dito S.Agostinho que «onde não há verdadeira justiça não pode existir verdadeiro direito» −ubi ergo iustitia vera non est, nec ius potest esse − e ainda isto: «parece-me não haver lei que justa não seja» −mihi lex esse non videtur, quæ iusta non fuerit−, e antes mesmo dele, seja lição de Tertuliano: lex iniustæ honor nullus, ou, nos tempos modernos, Francisco Suárez: lex iniustæ non est lex −, tenhamos em conta o ensinamento de S.Tomás no sentido de que uma lei iníqua não tem caráter de lei (non habet rationem legis), ainda que ela conserve alguma semelhança da lei −aliquid de similitudine legis− o que justifica, em dado aspecto, possamos usar o termo complexo «lei injusta».
Se é problemática a tarefa de definir a origem da palavra «lei», tampouco é menos árdua a de defini-la semântica e realmente.
Tenhamos em consideração que a noção de «lei» não é exclusiva do campo jurídico −longe, muito longe disso. Há leis em toda a parte: na matemática, nas ciências físicas (que se vão especializando: leis propriamente da física racional, leis da biologia, leis da química, leis da engenharia, etc.), nas ciências humanas em geral. Pode simplificar-se um tanto, sumariando a ideia de «lei» em três supostos: ordem, regra e relação. Ou, em outros termos, a «lei» pode conceituar-se: a regra para bem ordenar uma relação. Ordem não é uniformismo; ordem é diversidade hierarquizada, é a proporção harmônica dos entes.
Essa noção de lei é suficientemente geral para abranger toda a ordem possível do universo, desde os tropismos até os movimentos vegetativos, sensitivos ou racionais; também a ordem material dos entes e o mundo imaterial.
Vejamos um tanto mais.
O tropismo, embora muito comumente reportado aos organismos vegetais, é mais propriamente referível a toda vida orgânica, assim fez ver o muito autorizado Robert Brennan no conceito que lhe confere em General psychology: «tendência inata em cada organismo a reagir de maneira definida aos estímulos exteriores». Desse modo, ao lado, por exemplo, de diversos tropismos vegetais (como é exemplo o heliotropismo −vale dizer, o direcionamento de um vegetal atraído por um estímulo luminoso), fala-se também em outros tipos de tropismo, assim o são o viral e o bacteriano (aptidão de alguns vírus e de algumas bactérias de infectar determinadas células), e até mesmo em tropismos humanos, de que é indicativo o gravitropismo ou geotropismo, em que há influência da gravidade na operação humana. Todos esses tropismos estão sujeitos a regras −regras que correspondem a sua ordenação no mundo físico.
Os movimentos vegetativos humanos também têm suas leis. Esses movimentos, nos indivíduos humanos, são os próprios de suas potências vitais orgânicas, cujo sujeito é composto alma-corpo: movimentos nutritivos (de atração, retenção, digestão e expulsão), aumentativos e generantes.
Por igual, os movimentos sensitivos nos seres humanos, sejam movimentos cognoscitivos (os dos sentidos externos e internos), apetitivos (próprios dos apetites concupiscível e irascível) ou motrizes também possuem suas leis correspondentes.
Prosseguiremos.