Des. Ricardo Dip
No larguíssimo tema das fontes do direito notarial e registral, estamos versando o capítulo das «leis». A esse respeito, invocando, sobretudo, o magistério de Vareilles-Sommières, incursionamos no campo de uma definição da lei em geral. Rematou-a nosso autor, dizendo que «la règle, pour être obligatoire, doit être pensée, voulue, promulgué»; ou seja, primeiro, regra racional; depois, regra querida pela vontade; por fim, regra comunicada aos destinatários.
Essas observações de Vareilles-Sommières, e ele próprio assim refere, conformam-se com a definição da lei em geral formulada por S.Tomás de Aquino: «(…) uma prescrição da razão em ordem ao bem comum, promulgada por aquele que tem o cuidado da comunidade» (S.th., I-II, 90, 4).
Pois bem. Como é próprio da ordem do conhecimento, a definição é o primeiro modo de saber; o segundo, a divisão. Tratemos agora, portanto, da divisão das leis, vale dizer, da classificação de um todo (em nosso caso, as leis) em suas partes.
É preciso observar que a divisão pode ocorrer segundo variados critérios (não estaria mal que se dissessem variadíssimos os possíveis critérios para efetuar-se uma divisão).
Para a divisão das leis −e aqui elas se consideram apenas em sua dimensão de realidade e não quanto a seus aspectos nominais (etimológico e semântico)−, podem considerar-se, entre outros possíveis critérios, os que dizem respeito a suas partes subjetivas −ou seja, suas espécies. É dizer que se começa do todo como um gênero, e reparte-se esse gênero em suas partes específicas; essas espécies, por sua vez, comportam subdivisão.
Soa um tanto exótica, em nossos tempos, reconheça-se, a primeira divisão das leis a que se lança Vareilles-Sommières, repartindo-as leis divinas e leis humanas. Esse exotismo não parece advir de consideração negativa alguma, teoricamente, quanto ao fundamento dessa divisão, mas, isto sim, deriva de que, no ambiente secularizado da jurisprudência doutrinária e pretoriana, há uma espécie de concerto de silêncio quanto ao transcendente. Ou seja, de Deus não se fala na ambiência pública; Deus está recluso nos espaços privados.
Leis divinas, disse Vareilles-Sommières, são as que vêm imediatamente de Deus −«celles qui viennent immédiatement de Dieu». Leis humanas, prosseguiu nosso autor, são dispostas pelos homens, mas isso «en vertu du pouvoir que Dieu leur a donné naturellement ou surnaturallement» −em virtude do poder que Deus lhes deu natural ou sobrenaturalmente.
Certamente essa posição de Vareilles-Sommières é destoante da tópica habitual de nossos tempos, que repete de maneira incessante e com uma ingênua tranquilidade a afirmação de que «todo poder vem do povo». Essa tópica é tão poderosa, de fato, que não faltam até mesmo alguns que, dizendo-se afeiçoados a alguma das religiões cristãs, chegam a desviar-se ao largo da passagem de S.Paulo na Epístola aos Romanos (13,1): omnia potestas a Deo −todo o poder vem de Deus.
No mesmo sentido do entendimento de Vareilles-Sommières, vem, a propósito, uma lição do Papa Leão xiii: «(…) o poder público só pode vir de Deus. Só Deus, com efeito, é o verdadeiro e soberano Senhor das coisas; todas, quaisquer que sejam, devem necessariamente ser-lhes sujeitas e obedecer-lhe; de tal sorte que todo aquele que tem o direito de mandar não recebe esse direito senão de Deus, Chefe supremo de todos» −…potestatem publicam per se ipsam non esse nisi a Deo.
Prosseguiremos, versando, em nossa próxima explanação, o tema da divisão das leis humanas.