Fontes do direito notarial e registral (décima-primeira parte)

Des. Ricardo Dip

           Prosseguindo na incursão acerca da lei como fonte do direito notarial e registral, depois de termos invocado a noção tomista que define em essência toda e qualquer lei −«prescrição da razão em ordem ao bem comum, promulgada por aquele que tem o cuidado da comunidade», ou em sua expressão original no latim: rationis ordinatio ad bonum commune, ab eo qui curam communitatis habet, promulgata−, fizemos um excurso acerca da estrutura da Suma de teologia da qual recolhemos essa definição de lei, prometendo concluir essa digressão com uma referência à forma como se dispõe um artigo dessa Suma.

           Um artigo, no modelo adotado por S.Tomás na Suma de teologia (e em outras de suas obras), constitui uma unidade em que se divide uma questão; essa, a questão, é uma unidade próxima de uma parte da Suma; a própria Suma, já o dissemos, divide-se em três partes. Enfim, o artigo é a derradeira unidade em que se divide a Suma.

           A estrutura desse artigo é, com raras exceções, composta (i) de um título indicativo do tema de que se trata (p.ex.: «Se a promulgação é da essência da lei» −Utrum promulgatio sit de ratione legis); (ii) do videtur quod −«parece que»−, com que S.Tomás antecipa, sob o modo de um escólio, as dificuldades ou problemas opostos à conclusão a que pretende a final chegar (p.ex., «Parece que a promulgação não é da essência da lei» −Videtur quod promulgatio non sit de ratione legis); (iii) segue então a lista das objeções a sua ulterior conclusão; (iv) em continuidade, S.Tomás indica um sed contra (ou seja, «mas, em contrário»), ocasião para invocar autoridades que se opõem ao conteúdo das aludidas objeções; (v) respondeo (solução): essa é a passagem cumieira do artigo, o lugar em que o Doutor Comum melhor expõe seu entendimento acerca do tema discutido; (vi) resposta pontual a cada uma das objeções antecipadas (ad primum dicendum quod... ad secundum dicendum quod, etc.). É, e isto não o negam até os que, honestos intelectualmente, não se harmonizam com o pensamento de S.Tomás, uma articulação discursiva de valor eminente, da qual poderia mesmo dizer-se um modelo insuperável.

           Voltemos de nossa excursão e dirijamo-nos ao exame prometido das lições de Vareilles-Sommières acerca da definição e divisão da «lei» em geral.

           Diz Vareilles-Sommières, logo ao início de Les principes fondamentaux du droit, que, em seu significado mais amplo, a «lei» equivale a «toda regra a que um ser qualquer esteja submetido» (no original: la loi est toute règle à laquelle un être quelconque est assujetti). Invoca o autor, a seguir, uma passagem de Bossuet (1628-1704) −«tudo tem sua lei, tudo tem sua ordem» (tout a sa loi, tout a son ordre)−, e outra, de Montesquieu (1689-1755): «a divindade tem suas leis, as inteligências superiores ao homem têm suas leis, os animais têm suas leis, o homem tem suas leis» (la divinité a ses lois, les intelligences supérieures à l’homme ont leurs lois, les bêtes ont leurs lois, l’homme a ses lois). Depois, Vareilles-Sommières recruta um ensinamento de Francisco Suárez (1548-1617) no sentido de que há leis da linguagem, da arte, da indústria, de tal maneira que «todas as ciências têm por objeto o estudo das leis».

           Há uma célebre definição de «lei» expedida por Montesquieu no Esprit des lois, que assim diz: «As leis são as relações necessárias que derivam da natureza das coisas» −Les lois sont les rapports nécessaires qui dérivent de la nature des choses. Essa fórmula, observa deste modo Vareilles-Sommières, é profunda, mas, segue sua crítica, não é bastante clara, «porque ela não é inteiramente exata» (parce qu’elle n’est pas tout fait exacte). É que o conceito de Montesquieu assinala, segundo Vareilles-Sommières, uma característica que não é a principal, nem é essencial na ideia de «lei»: a lei, diz Vareilles, não é principal, nem essencialmente, uma relação, mas, isto sim, seu caráter primordial está em ser uma necessidade de ação ou de inação.

           Além disso, ao exigir a nota de «relação» no conceito de «lei», Montesquieu exclui a possibilidade de que haja uma lei referente ao Deus Uno (observe-se, porém, que isso não se aplica aos Deus Trino, porque as Pessoas da Trindade têm relações ad intra). Por derradeiro, ao afirmar que todas as leis são necessárias, Montesquieu o faz de modo excessivo, pois que se as leis do mundo material e do mundo moral são necessárias, diversamente não se podem dizer necessárias as leis ditas positivas (ou seja, as leis humanas).

           Prosseguiremos.