Des. Ricardo Dip
Ainda na sequência do exame da lei −em sentido amplo− como fonte do direito notarial e do direito registral, cabe aqui referir o fato de os tabeliães e registradores serem vocacionados ao atendimento da segurança jurídica.
Isso implica, ordinariamente, em sua atuação secundum legem, pois notários e registradores se submetem ao princípio da legalidade; mas, em alguns casos, sobretudo quanto aos notários, dá-se até mesmo o dever de conduzirem-se præter legem para resguardar o direito de não se vedarem as liberdades que a normativa permita.
Aí se põe um problema interpelante. É que, se o tabelião e o registrador não podem ficar aquém de seu direito (e dever) de independência, nem oficiar em contrário da legalidade e da veracidade, tampouco, entretanto, podem agir da maneira arbitrária, guiando-se unicamente por critérios subjetivos.
Antonio Rodríguez Adrados, que foi notário em Madrid, disse muito bem: «a autenticidade ou certeza legal que a fé pública imprime ao documento notarial seria, com efeito, grandemente perigosa para a segurança jurídica se o notário a pudesse prestar segundo seu livre arbítrio» −ou seja, de modo arbitrário.
É talvez a hora presente −e isto em que pese ao fato de a hiperinflação normativa ser um instrumento de turbulência da reta ordem política (lembra-me aqui a sentença atribuída a Tácito: corruptissima respublica, plurimæ leges)−, talvez seja agora o tempo adequado para, entre nós, pensar-se em uma codificação notarial, que, de começo, afirme e garanta a integridade jurídico-política do labor do tabelião, inibindo, de um lado, os excessos privatísticos que podem conduzir a uma sua falsa redução empresarial, mas, também, de outro lado, afastando os exageros, com que, assumindo tarefas urbanísticas, tributárias, quando não mesmo de investigação penal, o notário se vá funcionarizando, com o desprestígio correspondente junto à comunidade que o instituiu e ainda reclama como custódio imparcial de interesses tanto públicos, quanto privados.
Já se disse noutra parte: «Precisamos, com efeito, assim me parece, de um Código do Notariado latino brasileiro, um Código que, para logo, estimule o interesse pelo autônomo segmento do Direito Notarial −hoje tantas vezes resumido a um capítulo do Direito civil. Um Código que especialmente nos permita definir e acolher em preceitos, de maneira expressiva −como convém a uma instituição cifrada à segurança jurídica−, os temas nucleares da atuação notarial, tais os que dizem, à partida, com a verdade, a legalidade e a profissionalidade, e, na sequência, de modo articulado, progressivo e em conformação com a realidade histórica e circundante, outros muitos aspectos da função dos notários. Assim, a título de exemplos, tem de demarcar-se a pertinência da rogação notarial e indicar seu meio de prova, cuidar da autoria das escrituras e atos, da dação de fé pública, da livre eleição do notário pelos interessados, da imparcialidade notarial, da imediatidade do notário −e com muita prudência acerca de suas exceções, que hão de ser poucas, e via dicendo, incluindo uma clara definição sobre a personalidade física ou jurídica dos ofícios notariais, e até mesmo, a disciplina justa e minuciosa o quanto possível para que, em resguardo da independência profissional dos notários, possam eles desfiar objeção de sua consciência sempre que uma lei aparente −legis corruptio− se divorciar da lei natural».
Precisamos, parece-me, de um Código para o nosso Notariado, porque uma instituição destinada a conceder segurança jurídica não pode atuar somente sob a inspiração de princípios, já porque desses princípios −sendo de formação doutrinária− não descendem os direitos, senão que é todo o revés disso: são dos direitos que se induzem e depuram progressivamente os princípios, porque as regras se vão inventando a partir da concreta experiência jurídica e não por uma espécie de dedução principiológica e abstrata, como se o direito fosse o resultado de uma geometria legale, como disse o saudoso Francesco Gentile, que foi da Universidade de Pádua.
Precisamos de um Código que estabeleça claramente os deveres profissionais dos notários, porque a experiência confirma que todos se põem de acordo em exigir a observância da moral enquanto ela se posa quase de indeterminada, porque, nesse passo, ao menos se adere de modo implícito ao incontornável bonum faciendum et malum vitandum, primeiro princípio da razão prática. Basta, porém, que se passe a alguma singularização de comportamentos −ou seja, à premissa menor do discurso prático−, para já aí se insinuarem discussões e conflitos, sobremodo agudos em tempos de crise de racionalidade e quando se põe em xeque a própria existência do bem e do mal.
Além do mais, é urgente estabelecer entre nós uma disciplina sobre o valor e os limites do controle da legalidade notarial, nomeadamente para coordená-la com o não raro sobreposto controle registrário. Definir o que compete a um e a outro é, com efeito, nessa esfera, duplicar vantajosas garantias, e se o Notariado brasileiro não pode retroceder a uma atuação amanuense, tampouco o ofício registral pode abdicar de seu papel qualificador: é, assim, imperiosa a disciplina legal do relacionamento dessas duas notáveis instituições da segurança jurídica. Também a um Código de Notariado caberia, enfim, a missão de restabelecer as bases −nisto aprofundando trilhas que já vêm sendo de algum modo caminhadas− de uma sólida organização corporativa, para fortalecer-lhes o ofício e a defesa institucional, pondo empenho, por meio de regulações autônomas, na consecução do bem comum profissional dos notários.