Consciência do Notário e Consciência do Registrador (sexta parte)

A preparação de uma progressiva melhor formação da consciência moral exige de todos nós um esforço constante de retificação (pode falar-se também em purgação, purificação e mortificação). 

Consideremos aqui este nosso tema (que é vastíssimo, bem e logo se compreende) num plano limitado: o da atenção, ou, em outras palavras, o de estarmos dedicados, de maneira empenhada, em cada tempo de nossas condutas, a agir com adequada afeição à realidade e à observância de nossos deveres. Há uma expressão latina muito propícia para isto: age quod agis, que podemos verter com alguma liberdade: aja o que está agindo, pense no que está fazendo, “mantenha o foco”.

Às vezes, uns mais, outros menos, ora mais, ora menos, “perdemos o foco”, quer dizer, deixamos de pôr atenção no que operamos, porque não nos preparamos de maneira remota, ou de modo próximo, sem contar que não nos preocupamos de, por assim dizer, “hacer limpia la loca de casa” (limpar a imaginação), porque da memória nos vêm imagens que suscitam devaneios inócuos que, além do desperdício de tempo, afastam-nos da concentração no que devemos agir ou fazer. 

A esse propósito, devemos cuidar, de modo bastante especial, das leituras inúteis, até porque, em nossos dias, com o avanço tecnológico, há uma avulsão de coisas para ler, uma hiperinflação de textos e de assuntos. Claro esteja de logo que não se está aqui a impugnar a importância das leituras (embora devamos atender à circunstância de que a leitura seja apenas um dos meios para acercar-nos da realidade). Não se queira, pois, desprezar a leitura como se fora coisa inútil ou até prejudicial: entre as proposições fartamente errôneas de Jean-Jacques Rousseau estava a de que nos deveríamos afastar da leitura para evitar contaminação pela opinião alheia. Mas já não deixa de ter razão o pensador colombiano Nicolás Gómez Dávila quando aconselha que uma dada leitura pode ao menos envilecer aquele a quem antes não embrutece.

É preciso, pois, ter cuidado na escolha das leituras. Um pensador contemporâneo, Garrigou-Lagrange, disse em uma de suas obras: “A vida é curta; por isto, temos de contentar-nos com ler e reler aqueles escritos que verdadeiramente levam impresso sinal de Deus, e não perder tempo em leituras de coisas sem vida e sem valor”. E o nosso José Pedro, que foi provavelmente o maior de nossos filósofos do direito político, respondeu certa vez a um jornalista que lhe indagara se havia lido um livro que estava em moda: “A vida já é curta o bastante (disse José Pedro) para lermos tudo o que devemos… imagine-se o que seria se lêssemos também o que não devemos”. 

Além da escolha do que ler (ou seja, daquilo que importa ler), é preciso também extrair proveito das leituras (aqui o age quod agis especializa-se em lege quod legis -leia o que estás lendo). Para uma leitura proveitosa, a lectio deve seguir-se de sua cogitação (cogitatio) e de seu estudo (studium), disposições que devem culminar em alguma sorte de contemplação, e que, para os que têm fé, pode intercalar-se de alguma oração, assim o aconselhou S.Bento: “Oratio lectionem interrumpat” (que se interrompa a leitura para rezar).

Com a eleição adequada das leituras e das disposições para bem aproveitá-las, retificamos os devaneios da imaginação e, com isto, aproximamo-nos mais e melhor da realidade das coisas.

Mas não queria eu, a esta altura, terminar este passo acerca da formação da consciência moral, deixando a impressão de um preconceito contra as leituras. Por isto, vou encerrar este ponto com a memória de uma leitura frutuosa, recolhida do célebre livro Crime e castigo, de Dostoiévski: esta obra, escrita entre 1865 e 1866, publicada em 1867, tem por personagem principal Rodion Românovitch Raskólnikov (que também é chamado de Ródia Romanich Raskólnikov), um estudante de direito, que a si próprio se designa “ex-estudante”, porque largara o curso que fazia em São Petersburgo; Raskólnikov vivia num quarto que mais parece um armário, e matou, com deliberação e a machadadas, uma velha usurária (Aliona Ivânova) e sua irmã (Lisaveta Ivânova), escondendo as coisas roubadas sob uma pedra; depois disso, conheceu Sônia Marmeládov (que se tornara prostituta, portadora do “cartão amarelo”, por necessidade e sem contaminar a alma, assim o referiu Dostoiévski); e é com a leitura, feita por Sônia, de uma passagem do Evangelho de S.João, relativa à ressurreição de Lázaro, que tem início o surpreendente processo gradual de conversão ou regeneração das convicções de Raskólnikov, que ouviu a leitura, cogitou, estudou, contemplou e orou. 

Prosseguiremos.