As palavras nascem, vivem e morrem. Embora algumas, quando morram, é então que mais se solidem: assim é que Wilfried Stroh, em livro a um tempo muito sério, a outro, muito divertido −Latein is tot, es lebe latein (que, com alguma liberdade, pode verter-se em O latim morreu, viva o latim!), destaca, na denominação de um dos capítulos da obra, que, ao morrer, o latim tornou-se imortal.
É fato que as palavras são signos de conceitos, e estes, representação das coisas, como fez ver Aristóteles; mas é fato, não menos, a não rara mudança de significações das palavras. Sendo verdade que as palavras são convencionais, isto não significa serem elas arbitrárias: há sempre alguma relação entre as palavras e as coisas que se representam pelos conceitos que as mesmas palavras sinalizam.
Se a mumificação das palavras é, nas línguas vivas, algo quase impossível −foi Stephen Jaeger, no imperdível A inveja dos anjos (a edição brasileira é de 2019), que se referiu “à invejosa tirania que exercem os monumentos da pena”−, calha, em contrapartida, que há sempre algum perigo na degradação das palavras, sobretudo quando isto se dá não por seu envelhecimento cronológico, mas por seu envilecimento ideológico, vítimas elas do léxico inovador (Romano Amerio), da comichão das novidades, da mítica opinião de o novum coincidir sempre com o mellius (Roberto de Mattei).
Nicolás Gómez Dávila, nos Escolios a un texto implícito, deixou escrito que uma dada cortesia intelectual nos faz mesmo preferir a palavra ambígua à de sentido unívoco, e Lewis Carrol. em Alice no País das Maravilhas, fez já bastante compreender, pela boca de sua personagem Humpty Dumpty o quanto há de perigoso na livre desconstrução-reconstrução da linguagem: “Quando eu uso uma palavra, ela significa exatamente o que eu quero que ela signifique… nem mais nem menos” (it means just what I choose it to mean –neither more nor less).
Na vida do direito, esse apropositado método desconstrutivo-reconstrutivo (ou, talvez, seja melhor dizer: neoconstrutivo) tem sido lamentavelmente comum em nossos tempos. Gomes Canotilho, e este exemplo vale por muitos, chegou até a dizer que o vocábulo «constituição» −que se supõe capital no ambiente jurídico− integra o conjunto das palavras viajantes: tornou-se uma palavra, enfim, que, sem o câmbio de uma só de suas letras, excursiona por várias paisagens conceituais, pode variar a la carte. A nossa vista, ao largo de uma década, pouco mais, pouco menos, demo-nos conta da mudança semântica de termos relevantes na vida jurídica e social: p.ex., «casamento» e «família» já não sinalizam o que ensinavam ao largo de sua história mais do que milenar.
O vernáculo «cancelamento» frui, por agora, de intenso uso, ao instalar-se no campo social a prática da «política do cancelamento» −que alguns denominam «cultura do cancelamento»−, e que consiste, ad summam, em uma renovação, tantas centúrias depois, da pena de ostracismo que se infligiu em Atenas no século V a.C. Mas há entre estas duas políticas uma diferença interessante: a atual política de cancelamento afirma-se em oposição a algumas formas que se têm por preconceituosas ou discriminatórias (v.g., o racismo, a xenofobia, a homofobia), ao passo em que, diversamente, a política de ostracismo castigava os atentados à liberdade pública.
A palavra portuguesa «cancelamento» provém do substantivo latino cancellus, cancelli (cf. Antônio Geraldo da Cunha), exprimindo a noção de barra, grade, e, no plural (nominativo cancelli) tem a acepção de «portas». Correlato, o verbo latino cancello (infinitivo cancellare) significa cobrir com grades ou ainda, riscar ou inutilizar, riscando (vidē Torrinha). Parece traduzir-se, com esta última indicação, a ideia de «retificar negativamente», noção que parece muito avizinhada do conceito de cancelamento registral, a que devemos devotar nossa mais próxima atenção.