Bem de família (quinta parte)

        Consideremos um tanto uma questão relativa ao título idôneo para constituir-se o bem de família. Tal já o vimos, o art. 1.711 do vigente Código civil brasileiro refere-se à escritura pública e ao testamento como títulos para instituir-se o bem de família; lê-se nesse dispositivo legal: “Podem os cônjuges, ou a entidade familiar, mediante escritura pública ou testamento, destinar parte de seu patrimônio para instituir bem de família, desde que não ultrapasse um terço do patrimônio líquido existente ao tempo da instituição, mantidas as regras sobre a impenhorabilidade do imóvel residencial estabelecida em lei especial” (a ênfase gráfica não é do original).

          Não se desconhece, entretanto, que, de fato, há uma inclinação da jurisprudência pretoriana em favor da expansão do título judicial com caráter substituinte  da escritura pública, o que se vem amplamente admitido à conta de o título judicial ser, ele também, a exemplo da escritura notarial, um instrumento público.

          Ocorre que o referido art. 1.711 do Código civil tem manifesto caráter especial, o que poderia induzir à recusa da concorrência do título de origem judiciária; pensemos, para fins ilustrativos, numa transação processual −transação que é um dos modos de autocomposição de litígios (art. 200 do Código de processo civil brasileiro de 2015) e que, sendo homologada pelo juiz, redunda em resolução de mérito (alínea b do inc. III do art. 487 do mesmo Código), com autoridade de coisa julgada material (art. 502 do Código), ainda que não prejudique terceiros (art. 506, parte final).

          Ao tempo do Código civil brasileiro de 1916, previa-se no texto originário de seu art. 73 que a instituição do bem de família haveria de constar de instrumento público transcrito, o que levou Clóvis Beviláqua, com amparo em parecer de Epitácio Pessoa, a entender que o termo instrumento público adotado nesse dispositivo legal consistisse num gênero, de modo a abranger, como parte subjetiva a escritura pública, uma espécie daquele gênero, pois. Por isso, ante a redação original desse art. 73 do Código civil de Beviláqua, era de todo pertinente que a constituição do bem de família se desse por meio de título judicial.

          Sobreveio, então, a Lei 3.725, de 15 de janeiro de 1919, modificando o texto do art. 73 do Código, para substituir o termo complexo instrumento público transcrito pelo termo também complexo escritura pública transcrita.

          Dessa alteração, pois, emergente já ao tempo do Código civil anterior, parecia, com efeito, apartar-se da letra da lei, para a instituição do bem de família, substituir-se a espécie expressamente indicada na normativa −a escritura pública− por outra das partes subjetivas de instrumento público, ou seja, substituir a escritura pública pelo título judicial.

          Nosso Código civil de 2002 preservou, textualmente, a referência à escritura pública por título especial para a instituição do bem de família (art. 1.711), de maneira que não aparenta possa admitir-se a substituição desse título específico previsto de maneira explícita na lei por um título judicial. Não é demasiado observar que concorre a abonar esse entendimento o critério da presunção de continuidade legislativa: a presunção de que o legislador, ao conservar, em nova lei, um enunciado constante de lei revogada, almeja preservar o significado normativo do texto anterior.

          Assim, entre nós parece não caber o título judicial para a instituição do bem de família, à conta do que dispõe o art. 1.711 do vigente Código civil.