Bem de família (décima-segunda parte)

No processo de registro constitutivo do bem de família, a qualificação do título deve preceder a publicação do edital referido nos arts. 261 e 262 da Lei 6.015, de 1973. Lê-se no caput desse art. 262 que se publicará o edital “se não ocorrer razão para dúvida”. Significa dizer que já se terá, a essa altura, proferido juízo de qualificação positiva, até porque, se houvesse razão para a dúvida, também se suporia qualificação prévia, ainda que negativa.

Abstraído aqui o exame dos aspectos gerais da qualificação registral, tratemos aqui de apreciar se o bem de família pode incidir sobre imóvel onerado com hipoteca.

Clóvis Beviláqua já ensinava que, para admitir-se o bem de família, “o prédio deve estar livre de hipoteca (…)”. Também Serpa Lopes, invocando a autoridade de Eduardo Espínola, sustentou que o bem de família institui uma relação jurídica que impede a simultaneidade da hipoteca: “Aqui não se faz mister um estado de insolvência declarado, pois que, pelo próprio vínculo, o imóvel está subordinado a uma dívida”. É, por igual, o entendimento de Ademar Fioranelli, para quem não pode haver concomitância entre o bem de família e a hipoteca de um mesmo imóvel, “porque a impenhorabilidade é da própria essência do bem de família”.

Parece caber, todavia, uma distinção. Se é verdade que os predicados da inalienabilidade e da impenhorabilidade do imóvel objeto do bem de família não se compatibilizam com sua possível constrição resultante, ipso iure, da garantia hipotecária, cabe, contudo, e isto observou o registrador José Luiz Germano, que foi antes magistrado no Estado de São Paulo, considerar que, se a hipoteca garantir dívida anterior à constituição do bem de família, possa instituir-se o bem de família sobre imóvel hipotecado, contanto que não se trate de garantia referente a dívida futura (hipoteca de proprietário, hipoteca com reserva de grau).

A normativa de regência prevê que do edital no processo de registro de bem de família deve conter “I- o resumo da escritura, nome, naturalidade e profissão do instituidor, data do instrumento e nome do tabelião que o fez, situação e característicos do prédio; II -o aviso de que, se alguém se julgar prejudicado, deverá, dentro em trinta (30) dias, contados da data da publicação, reclamar contra a instituição, por escrito e perante o oficial” (art. 262 da Lei 6.015).

É controversa a sobrevivência desse preceito do art. 262 diante da vigência posterior do art. 1.714 do Código civil brasileiro, que diz: “O bem de família, quer instituído pelos cônjuges ou por terceiro, constitui-se pelo registro de seu título no Registro de Imóveis”. Alguns autores, assim, p.ex., Milton Paulo de Carvalho Filho e Zeno Veloso opinam no sentido da revogação tácita da norma do art. 262 da Lei de registros públicos; diversamente, Ademar Fioranelli, Luís Ramon Alvares, Arnaldo Rizzardo e, parece, Paulo Nader, entendem subsistir a norma do art. 262 da Lei 6.015.

A discussão, neste passo, funda-se no embate entre (i) o critério da inteira regulação da matéria do bem de família pelo Código civil e (ii) o critério da especialidade da Lei 6.015, nos termos do que prevê o § 2º do art. 2º do Decreto-lei n. 4.657/1942 (“A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior”); já o critério anterior vem contemplado na parte final do § 1º do mesmo art. 2º: “A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior”.

Ainda que se deva reconhecer a razoabilidade na tese de insubsistência do art. 262 da Lei 6.015, parece mais provável que o tema da publicação dos editais é de natureza processual, menos propício ao Código civil do que à normativa registral: há terceiros interessados a que é necessário, por justiça, e conveniente, por precaução, dar notícia formal do processo de registro do bem de família.

Aparenta que o ponto clave em favor da vigência do art. 262 da Lei de registros públicos está em sua harmonia com o preceito constitucional de garantia do contraditório, tema preliminar de toda possível discussão sobre o mérito (inc. LV do art. 5º da Constituição federal de 1988: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”).