ATRIBUIÇÃO DE NOME (parte 3)
Os nomes –orais e, depois deles, literais– correspondem a conceitos. Já sabemos a lição de Aristóteles no Peri Hermeneias: as palavras escritas são símbolos ou signos das orais; e as palavras orais, por sua vez, expressam as paixões da alma –as impressões de logo sensíveis e, em seguida, intelectuais; influem na vontade; gestam os sentimentos. E, por fim, essas paixões –as que padece os homens, porque neles impressas– são, de algum modo, imagens das coisas do mundo.
Os nomes, pois, a linguagem em resumo, ela é, em derradeira análise, um símbolo das coisas, e seu uso pelos homens não só lhes importa de maneira monástica, é dizer, solitária, atomística, ut singulus, senão que também enquanto indivíduo ou membro, ut socius, de uma comunidade política. Ainda uma vez recorramos a Aristóteles, que deixou dito, no livro da Política, existir a linguagem para fazer manifesto o bem e o mal, o justo e o injusto, uma vez que a comunidade dessas coisas é o que constitui a família e o estado.
É de todo plausível, pois, considerar que, sendo o homem um animal político e social, tivesse ele, já à origem, o dom da linguagem, a faculdade natural de falar, o que parece moldar-se ao Testamento (Gên., 2,19). Tem-se nisso, portanto, uma boa razão para, ao lado dos resíduos físicos das antigas cidades humanas, pôr-se o interesse em buscar os remanescentes de suas linguagens para assim conhecer-lhes a história, a cultura, a psicologia. Pode logo adivinhar-se a relevância do liame entre linguagem e cultura, e já Camões, nos Lusíadas, trazia notícia da tradição que mantinha o afeto da deusa Vênus pela gente romana e pela gente lusitana, porque sua língua (a dos lusíadas), podia crer-se que, com pequena corrupção, fosse a latina (cf. Canto I, 33).
Jacques Ploncard d’Assac, nas páginas iniciais de seu La peur des mots, referiu-se a uma lição de Charles Maurras, para quem é preciso dar às ideias e às coisas o nome que elas têm por sua própria natureza ou por sua história, por sua sadia nomenclatura científica ou pela boa linguagem usual; esse é preço para os homens compreenderem-se e permanecerem fieis a seus próprios pensamentos –c’est à ce prix qu l’on peut se comprendre les uns les autres et qu’on reste fidèle à ses propres pensées.
Mas se é assim, se é assim para construir, conservar e animar a compreensão, a fidelidade com os pensamentos, o progresso dos homens e de suas nações, o verdadeiro quadro de justiça possível e da paz que dela resulta (pax opus iustitiæ est), há também o reverso disso, a ofensa do nome das coisas e das ideias afligindo as ideias e as coisas, que deixam de designar segundo sua própria natureza, ou sua história, ou sua terminologia científica, ou o bom usus loquendi, e, ao contrário, vêm nomes para desconstruí-las, revolucioná-las, fomentar a decadência intelectual e moral dos homens e de suas nações.
Não é de hoje, reconheça-se, que se tem destruído, ora mais, ora menos, a unidade da linguagem –e, pois, a fidelidade às paixões da alma e às coisas que a linguagem, ao fim, simboliza, expressa e comunica. A catástrofe babélica que baralhou a linguagem em toda a terra repetiu sua tragédia, de algum modo, na dissolução do pensamento e da cultura gregas ao tempo dos sofistas, e de quando em quando, nos períodos de decadência cultural dos homens, ela avultará, para confundir verdade e erro, bem e mal, justo e injusto.
E se mudar de linguagem, tal o disse Rafael Gambra, é mudar de alma (El lenguaje y los mitos, p. 11)–cambiar de lenguage es cambiar de alma–, confirmando o aforismo lex orandi, lex credendi, talvez sejam estes nossos tempos muito propícios, tomando consciência das palavras (como consta do título de uma das obras de Elias Canetti), para considerar uma sugestão de sabedoria prática: “A morte e a vida estão em poder da língua (mors et vita in manu linguæ); qual seja seu uso (qui diligunt eam), tais serão os frutos que se comem (comedent fructus eius)” (Prov. 18, 21).
Em continuidade, trataremos de um só exemplo: o do uso da palavra matrimônio.