Ativismo Judicial-Administrativo (quarta parte)

            Para encerrar nossas preleções sobre o ativismo judicial-administrativo, consideremos que o problema a seu respeito é muito mais grave quando se considera que a potestade de regência judicial-administrativa possa ter exatamente sob o modo de regidos ou “subordinados”, secundum quid (é dizer, em aspectos restritos),  juristas que são dotados formalmente do atributo da independência jurídica, assim o são não apenas os magistrados do jurisdicional, mas, em boa parte dos ordenamentos positivos que se filiam à instituição do notariado do tipo latino, os tabeliães de notas e, derivadamente, os tabeliães de protesto e os registradores públicos.

              Claro que isto já constitui todo um tema teórico importante, qual o de a função jurídica independente (própria da prudência jurídica) poder precisamente distinguir-se da atuação sindicável na esfera administrativa. E mais incisivamente o problema se intensifica quando se acompanhe do ativismo nas decisões de regência administrativa, porque, então, elas não se submetem aos limites legais prévios.

           O poder de regência judicial-administrativo −potestas regiminis− divide-se em potestas iudicialis e potestas non iudicialis, consoante, respectivamente, haja maior ou menor rigor em seu exercício.

           Aquelas, as que se dizem potestates iudiciales, são de duas espécies: uma, a de superintendência –poder de revogar, modificar ou suspender, total ou parcialmente, os atos praticados pelos regidos; a outra, o poder disciplinar. Esse poder de superintendência é um dado poder de ordens (ou seja, uma potestas ordinum), e consiste num comando imperativo para um caso concreto, singular (note-se: de exercício posterior à solução originária).

              Já as potestates non iudiciales classificam-se em

(i) poder de orientação –potestas recommendationis, atribuição de diretivas ou de recomendações, o que se designa por normativa ou regulativa soft;

(ii) poder de instrução –potestas leges ferendi, le pouvoir d’instruction dos franceses, que é potestade de previsões imperativas para situações gerais e abstratas;

e (iii) poder de ordem –potestas ordinum amplior ou potestas iussi–, competência para expedir comandos prévios em casos singulares, com substituição do exercício da competência originária (nisto se distingue do poder de superintendência).

              Bem se vê desta ampla esfera de potestades que o ativismo judicial-administrativo é, em algumas de suas categorias e, quando menos, potencialmente, incompaginável com a independência dos juristas “subordinados”.

              Calha que esses juristas, por definição, constituem função da comunidade, de maneira que apenas, em linha de princípio, estão submetidos diretamente à lei e não a um poder de subordinação hierárquico-administrativa. Assinale-se –e bem é de frisar-se este ponto– que a independência jurídica desses juristas é um benefício da comunidade e não desses mesmos juristas, decerto.

             Examinando o tema no cenário espanhol da magistratura contemporânea, refere-se Alejandro Nieto a um régimen esquizofrénico, em vista de uma condición bipolar desses juristas “subordinados”, submetidos ao autogoverno administrativo do judiciário que, diz ele, tem acarretado a deterioração progressiva do poder judicial: “Quienes juzgan a los demás no pueden depender de nadie para que puedan obrar con absoluta  libertad e imparcialidad. Sólo están vinculados a la Ley (…)”.

              Isto, é verdade, parece mais diretamente relativo aos magistrados do jurisdicional, mas também pode referir-se a todos os profissionais de direito (stricto sensu), vale por dizer, a todos os que, secundum legem, exercitam funções de juristas com independência jurídica. Prossegue o autor, não sem faltar-lhe uma dose de ironia (ou mesmo de sarcasmo): estes indivíduos, “dotados de potestades inequivocamente sobrehumanasen cuanto que participan de los poderes del Estado y administran la metafísica a través de la Justicia” são tanto, de um lado, “majestuosos titulares de un Poder constitucional”, quanto, de outro lado, “modestos funcionarios públicos con calendario de trabajo y sujetos a inspeciones funcionales” (cf. El malestar de los jueces y el modelo judicial, p. 17).

              E adiante, continua Alejandro Nieto: “Según la Constitución lo jueces solamente están sometidos al imperio de la Ley; pero ahora se ha puesto de moda exigirles que se adapten a las necesidades de los tiempos y de las circunstancias políticas” (p. 117).

              A independência funcional dos magistrados que, em alguma parte, vai sendo paulatinamente substituída pela independência institucional da magistratura (cf. Alejandro Nieto, El desgobierno de lo público, p. 314 et sqq.), parece comprometer-se mais agudamente com o fato de o voluntarismo das decisões administrativas de seu autogoverno sequer permitir, no limite, um figurino sólido de orientação disciplinar.

              O fenômeno –isto é paradoxal, pois tem frequentes visos de nominalismo– aparenta de há muito pronto a alçar-se a um plano talvez universal: Paul Lombard, p.ex., a páginas tantas de um seu livro interpelante, diz que o Conseil d’État francês se tornou, atribuindo-se seus próprios parâmetros, o géniteur de droit: “Oráculo jurídico, ele escolhe suas normas de apreciação, demarca as fronteiras entre suas prerrogativas e seus tabus, define a seu gosto os entraves aos direitos fundamentais, ajusta-os às suas sentenças” (p. 159).

              Não é sem uma temível razão (vae mihi!) que este livro de Lombard se chama Le crépuscule des juges.