Ata Notarial (segunda parte)

A ata notarial pode não ser –e não o é, de fato– o mais popular dos instrumentos públicos no Brasil, mas tem a seu favor a circunstância de ter sido o primeiro documento formado em nossas terras, hospedando prática já conhecida em Portugal (desde, ao menos, 1342 ou 1343, com o Livro de milagres de Santa Maria de Guimarães, conjunto de 46 assentamentos expedidos pelo tabelião Afonso Peres, da cidade de Guimarães –cf. Justino Adriano Farias da Silva, “Evolução histórica da ata notarial”, in  VV.AA., Ata notarial, coordenação de Leonardo Brandelli, Porto Alegre: Safe -Irib, 2004, p. 139).

 

Foi uma ata notarial a famosa Carta de 1º de maio de 1500 lavrada pelo escrivão Pero Vaz de Caminha, na que então se dizia ser a Ilha de Vera Cruz; documento que, “com louçanias de estilo” (Waldemar Martins Ferreira, in História do direito brasileiro.  Rio de Janeiro -São Paulo: Freitas Bastos, 1951, tomo I, p. 29), consiste numa resenha histórica, um documento de “natureza narrativa” (assim o indicou Leonardo Brandelli, in VV.AA., Ata notarial, p. 41).

 

Embora, em relação a seu conteúdo, essa Carta de Caminha –dirigida ao rei de Portugal, Dom Manuel I (1649-1521)– tenha a primazia na formalização de um documento no Brasil, não é tido, porém, como o primeiro documento de matéria jurídica emitido em nossas terras, pois, quanto a documento de conteúdo jurídico, parece pioneiro o elaborado em 1556 pelo jesuíta Padre Manuel da Nóbrega numa divergência instalada, a propósito da questão da liberdade dos indígenas, com o teólogo Quirício Caxa, em uma junta instituída pelo governador geral Mem de Sá (cf. Wilson Martins, in História da inteligência brasileira. São Paulo: Cultrux : Edusp : Secretaria de Cultura, Ciência e Tecnologia, 1976, vol. I, p. 49).

 

Esse caráter narrativo da Carta de Caminha –tal o referiu Leonardo Brandelli –vale dizer, tratar-se de resenha ou extrato de fatos–, a natureza sensível desses fatos e a lavratura do documento, propter officium, segundo o captado e percebido pelas potências sensitivas, externas e internas de seu autor, o escrivão Pero Vaz de Caminha, conferem a esse documento a espécie da ata notarial.

 

Assim, são elementos essenciais, pois, que permitem reconhecer na Carta de Caminha a caracterização de uma ata notarial: (i) a narrativa de um fato sensível, (ii) e ser esse fato captado pelos sentidos externos e percepcionado pelos sentidos internos de seu autor, suposto sempre seja um notário (ou ter-lhe a função).

 

A ideia de resenha, extrato ou narrativa é da essência das atas notariais: tenha-se à conta de ilustração, p.ex., que, em algum tempo, na Alemanha, a forma própria literal e autorizada de um negócio jurídico já se pôde substituir por uma ata, é dizer, pela resenha escrita do negócio jurídico já formalizado, sem que da ata, entretanto, constassem autorização e subscrição dos outorgantes, das testemunhas e do notário (cf. José Bono Huerta, in Historia del derecho notarial español. Madrid: Junta de Decanos de los Colegios Notariales de España, 1979, tomo I, p. 133). Embora, pois, referindo-se a um negócio jurídico, estava-se aí diante de uma ata, de uma narrativa ou resenha de um fato: o da celebração de um dado negócio jurídico.

 

A distinção entre a escritura pública e a ata notarial pode escorar-se, num primeiro momento, em que a escritura se refere a atos jurídicos (lato sensu) que expressam alguma sorte de prestação de consentimento, o que parece apontar, principalmente, os contratos. A razão de ser desse discrimen está posta em que, como bem avistou um dos mais eminentes notarialistas contemporâneos –Antonio Rodríguez Adrados– em, de consonância com o tipo latino do notariado, a escritura permite “la máxima intervención del Notario en el contenido negocial del documento”, extraindo-se, pois, maior eficácia jurídica nessa instrumentação, o que não poderia obter-se com um documento cifrado à mera comprovação de fatos, como é o caso da ata notarial (“Sobre las consecuencias de la funcionarización de los notarios”, in Revista de Derecho Notarial Mexicano. México, 1981, p. 133-4). No mesmo sentido, lê-se em Núñez: “Las actas (…) solo exigen del notario una actividad de visu et auditu, suis sensibus, sin entrar en el fondo, adaptándose al Derecho únicamente en cuanto a los preceptos de forma en aquellos casos excepcionales en que la Ley le exigiere: protestos, subastas, etc.” (Hechos y derechos en el documento público. Madrid: Instituto Nacional de Estúdios Jurídicos, 1950, p. 5). Diversamente, nas escrituras, “el Notario ha de agregar al nudo hecho las estructuras jurídicas indispensables, es esquema legal del acto o contrato” (p. 6).

 

A discussão que persevera, no entanto, está em saber se a circunstância de um instrumento notarial ter por objeto uma declaração de vontade sempre redundará na configuração de uma escritura pública ou se, diversamente, poderá resultar em uma ata notarial.

 

É o de que trataremos em nossa exposição seguinte.