Artigo: O notário e a moralidade pública (parte 22)*

Artigo: O notário e a moralidade pública (parte 22)*

 Consideremos agora as virtudes de civilidade que, assim as elencou Bernardino Montejano, são exigidas de todos na vida social e, sobremaneira, dos que se elevam em dignidade, é dizer, dotam-se de autoridade e ou de poder na comunidade.

Trata-se aqui dos hábitos da afabilidade e da liberalidade, a cujo breve exame sucederá a análise, também concisa, de outros três hábitos: o da exemplaridade, o do espírito de serviço e o da formação cívica.

As virtudes de civilidade –entre as quais se contam as da afabilidade e da liberalidade– dizem respeito à boa ordem da vida social, em que as relações humanas devem observar, tanto nas palavras, quanto nas ações, regras de decoro, isto é, uma disciplina de convivência decente, honesta.

Consiste a afabilidade numa virtude especial socialmente unitiva, anexa da justiça (anexa, ou potencial, porque seu débito não é estrito, mas moral) que nos dispõe a falar e agir de modo o mais possível amável –educado, urbano, cortês–  no trato com todas as pessoas. Royo Marín deixou-nos uma lista de condutas afáveis, entre as quais estão a do elogio simples e natural, a do bom jeito em receber visitas, a do agradecimento com entusiasmo, enfim: “la urbanidad en palabras y modales”; e invoca ele uma interessante passagem de Charles Gounod, para quem “o homem se inclina ante o talento, mas apenas se ajoelha diante da bondade”.

Vícios opostos da afabilidade são, por defeito, o ânimo de litígio ou espírito de contradição, e, por excesso, a adulação (ou lisonja). É este o vício de quem busca agradar de maneira desordenada ou excessiva com o fim de obter alguma vantagem pessoal; lê-se, a propósito, em S.Tomás:

“Se quer alguém conversar com outra pessoa, tendo a intenção de agradá-la sempre e jamais contradizê-la, excede-se em sua afabilidade e, portanto, peca por excesso. Se faz isto por mera jovialidade, pode chamar-se amável segundo Aristóteles; mas se o faz buscando o próprio benefício ou interesse, incorre no pecado de adulação” (S.th., II-II, 151, 1).

Permita-se um acréscimo – para inocentar a expressão adulatio peccatum est, quando se usa muito amplamente; é que S.Tomás prossegue: “Nada obstante, o nome de adulação estende-se comumente a todos aqueles que, de maneira desmedida, buscam agradar a outros com palavras ou com fatos no trato correntio” (id.). Ou seja, há uma adulatio sem ao concurso da intenção de favorecer o adulador.

O litígio ou espírito de contradição – avesso da afabilidade por defeito – é a oposição frequente e sistemática à opinião dos outros, com a intenção de entristecê-los ou irritá-los, ou ainda, quando menos, de não lhes proporcionar prazer. Este vício acerca-se (e, de algum modo os compreende) dos vícios da discórdia (contradição por fala de amor) e da falta de mansidão (proveniente da ira).

Dos notários espera-se eduquem-se na virtude da afabilidade, não só no trato profissional, é verdade, mas neste, nas relações quer com seus fiscais, quer com os clientes, quer, ainda e por fim, com seus colaboradores. Infelizmente, há casos de dissonância nessas relações, destacadamente dando-se quadros de lisonja no trato com superiores e de litígio (discórdia ou falta de mansidão) no relacionamento com os inferiores.

Royo Marín, em cujas lições estamos apoiando estas linhas, define a liberalidade virtude que deriva da justiça (i.e., hábito anexo ou potencial) e inclina alguém a desprender-se facilmente das coisas exteriores, em benefício de outros, observada uma reta ordem. São-lhe opostos os vícios, por defeito, da avareza (que é o apetite desordenado de bens exteriores e cuja causa é a concupiscência dos olhos; assim o disse Garrigou-Lagrange, “a temperança do avaro é uma falsa virtude”) e, por excesso, da prodigalidade (os desapegos dos bens exteriores fora da reta ordem de tempo, lugar e pessoas).

Cabe ainda uma distinção: à liberalidade junta-se proximamente, com diverso objeto, a virtude da magnificência. Assim, se o desprendimento dos bens exteriores diz respeito ao que pode designar-se riquezas “medíocres e moderadas” (S.th., II-II, 129, 2), tem-se a liberalidade; mas se essas riquezas são de maior vulto (magnas pecunias), o desprendimento delas põe-nos diante da virtude da magnificência.

*Por desembargador Ricardo Dip

Fonte: CNB/PR