Na sequência do que temos considerado acerca da relação entre o notário e a moralidade pública, cuidaremos agora de outra virtude anexa à da justiça: a veracidade.
Trata-se de tema sobre o qual já percorremos alguns caminhos, especialmente em contraste com um de seus vícios opostos: a mentira (vidē “Notas sobre Notas” 12 a 15), e do dever da veracidade ficou dito –o que ora se repete– ser universal, porquanto “a verdade é o fim do entendimento humano”, de tal maneira que, “para a perfeição de sua natureza, todo homem é vocacionado a alcançar a verdade”.
Repisemos aqui, de início, as passadas firmes deixadas pela doutrina clássica, sobretudo as de S.Tomás (S.th., II-II, 109, 1-4). Dois são os modos significados pelo termo “verdade” ou “veracidade”. Pelo primeiro modo, tem-se a acepção de uma certa igualdade com a coisa apreendida (no âmbito da razão teórica) ou de conformidade da coisa com sua regra (humanamente: na esfera da razão prática). Com esta significação, a verdade ou veracidade não é um hábito (ou virtude), mas o objeto ou fim de um hábito –aquilo a que se inclinam os atos e gestam, pela reiteração, o hábito da veracidade.
É pelo segundo modo, aí sim, que estamos diante da virtude ou hábito da veracidade ou da verdade. Já aqui se trata de alguém enunciar o verdadeiro, de expressá-lo por palavras ou alguns fatos ou coisas exteriores.
Então, no primeiro modo significativo, a verdade é a própria realidade das coisas que se encontram fora do intelecto (facultas cognoscendi), salvo o próprio intelecto. Assim, neste primeiro sentido, a verdade reside não só na própria coisa de que se enuncia algo, mas também no conhecimento de quem apreende a realidade dessa coisa. Desta maneira, pois, a verdade está tanto no sujeito cognoscente, quanto na coisa que é conhecida: é adequação do entendimento humano à coisa (adæquatio intellectus humani ad rem), e também é adequação –ou conformidade– das coisas ao entendimento (adæquatio rerum ad intellectum; que, no campo estritamente humano, é o próprio da razão prática, que conhece as regras do agir e do fazer).
Ora, é uma inclinação natural dos homens a de saber tudo quanto lhes aperfeiçoe a natureza (S.th., I, 12, 8, ad4um), e, bem por isto, estão eles sempre em busca da verdade: este é o sentido positivo, assim o disse Danilo Castellano, da expressão “abertura à verdade” (ou aberturismo): o sentido de uma perseverante exigência de proceder, gradualmente, à descoberta da verdade.
Mas sendo certo que os homens tendam por natureza à verdade, duas coisas devem, a propósito, considerar-se com muita cautela: primeira, o fato de que a verdade não se confunde com a certeza; esta, a certeza, é a persuasão ou convencimento de que se está na posse da verdade; a certeza é um estado subjetivo; a verdade, nesta relação com o sujeito, uma realidade objetiva.
Segunda coisa: vivemos um tempo que se tem dito da “ditadura do relativismo”, tempos de pirronismo, de novidadismo, de discussionismo (Romano Amerio), em que a fluidez contínua de enunciados ou narrativas se faz lei do pensamento, destronando a verdade; um tempo em que reina a opinião, a dóxica, avessa das persuasões definitivas. É uma era em que soa de modo raro uma personagem de Elias Canetti, Kien, aquele Kien que “detestava mentiras, e que, desde criança, atinha-se à verdade”. Parece vivermos um século em que se propõe substituir a lição evangélica Veritas liberabit vos (S.João, 8,32) pela exaltação da autonomia absoluta do homem, tal como sintetizaram Contreras e Poole: “A liberdade vos fará verdadeiros”. (Por algo isto lembra a conversa entre Eva e a serpente no livro do Gênesis…).
Pois é exatamente numa situação epocal tão pouco afeiçoada à verdade (no primeiro modo) que mais se exige a veracidade como virtude. E dos notários, tal se verá, o mais intenso dos amores pela verdade.
Prosseguiremos.
*Por desembargador Ricardo Dip