Artigo: o notário e a moralidade pública*

Artigo: o notário e a moralidade pública*

O NOTÁRIO E A MORALIDADE PÚBLICA (final)

            A exemplaridade seja nas palavras, seja nas ações ou omissões é o hábito das condutas retas, de modo que, positivamente, estimulem-se outros a bem conduzirem-se e, negativamente, não se lhes proporcionem incitações ou induções a maus comportamentos.

Cabe distinguir a exemplaridade em relação à hipocrisia. É muito comum o uso do vocábulo “hipocrisia” para significar a falta de inteireza ou integralidade entre o que alguém pensa e o modo como se conduz. Mas isto, em rigor, não é a hipocrisia, senão que é apenas a imperfeição de vida, a que todos nós tendemos, por nossa natureza decaída. Uma coisa é que adiramos sinceramente a uma verdade e, no entanto, caiamos no erro por força da debilidade de nossa natureza humana; outra, muito diversa, é a doblez com que simulamos externamente, de maneira especial, sermos de modo diverso do que somos em realidade. Ponhamos uma ilustração: quer-se habitualmente ser justo, mas, num dado caso, pratica-se uma injustiça (v.g., recebe-se, por erro do devedor, mais dinheiro num negócio do que o devido, e não se restitui); isto não é ser hipócrita, é ser pecador; hipócrita seria quem, habitualmente querendo ser injusto, pregue a justiça.

Romano Amerio –a quem temos tantas vezes recorrido neste capítulo– deixou dito que há uma condição constitutiva de todos os homens diante da lei moral, que é a ter de manifestar palavras mais elevadas (numa ordem ideal) do que seu próprio comportamento com o status de predicador (ou seja, numa ordem real). É simples entender isto: como todos somos imperfeitos, ninguém, humanamente, poderia predicar as verdades morais a título pessoal, porque ninguém possui uma virtude comparável à elevação da doutrina; por isto, não há hipocrisia, não há doblez se não se fingem virtudes, porque a manifestação pública não deve descer ao nível dos costumes (Iota unum, § 82). Disse muito bem Garrigou-Lagrange que não se comete o pecado de hipocrisia com o mero fato de não se ser perfeito, mas, sim, com o de não se aspirar sinceramente à perfeição, ainda que de modo gradual e progressivo.

Daí que a exemplaridade cumpra uma função positiva no fomento das virtudes, e outra, negativa, em evitar o induzimento e a instigação aos vícios (este quadro negativo é o que corresponde, no âmbito da moral, à figura do escândalo).

A exemplaridade dos notários é, primeiro, relevante para seus clientes e cooperadores, mais adiante –incluso por via mesmo de ressonância do comportamento daqueles– para toda a vida comunitária. Não basta ser notário, mas é preciso ser notarius bonus. Cabe ainda observar, agora considerando o círculo profissional dos próprios notários, o quanto de exemplos contagiantes, para bem ou para mal, tem-se à vista com as condutas de lideranças dos órgãos corporativos: é de indagar se os líderes do notariado se dão conta do papel paideico de suas palavras e ações.

Prosseguindo: o espírito de serviço é parte do integrante do conceito de profissão, que pode definir-se: a atividade pessoal que, por vocação e com espírito de serviço, exercita-se, habitualmente, em ordem ao bem comum e como meio de prover as necessidades da vida (cf. nosso Da ética geral à ética profissional dos registradores, p. 84 da 2.ed.). Trata-se aqui da inclinação de retamente pôr-se a serviço do bem comum; por mais, com efeito, legítimo e necessário seja o exercício das profissões para o sustento das necessidades vitais próprias e familiares (o que, de resto, não afasta o relevo de responder, com o exercício profissional, a uma chamada ou vocação para atender à natureza singular de cada pessoa), por mais o trabalho prestado reclame sua retribuição pecuniária proporcional, isto não se eleva ao ponto de suprimir ou debilitar a reta intenção de, com o labor, servir ao bem comum.

Por fim, as virtudes morais educam-se. A formação cívica –é dizer, a formação para a convivência na civitas– é exigida de todos os cidadãos e, muito intensamente, dos que são elevados em dignidade na ordem social e política. O modo de ser de um notário –o modo de ser notário– é o modo, em resumo, com que ele exercita suas funções notariais, é o modo de atuar singularíssimo (a que não faltarão suores e lágrimas) com que o notário se revela na condição de pessoa irrepetível. E este modo de ser, este modo de estar na vida notarial, muito depende da formação cívica, da educação para as virtudes.

Faz mais de 60 anos, Manuel de la Plaza publicou um estudo –Moral profesional del juez– de que eu, então, com recente ingresso nos quadros da Magistratura paulista, recolhi um trecho e depositei-o em minha alma como aspiração: a de que, no ocaso de minha vida, exaurido de batalhas vitoriadas e perdidas, ganhas e derrotadas, ao redigir o último de meus acórdãos sinta ainda a ingênua emoção com que proferi minha primeiro sentença.

Aos notários, dedico o mesmo voto de que, ao documentarem a derradeira de suas escrituras, palpite seus corações o mesmo honrado e inocente sentimento de seus albores notariais.

*Por desembargador Ricardo Dip

Fonte: CNB/PR