Des. Ricardo Dip
O NOTÁRIO E A MORALIDADE PÚBLICA (parte 7)
Por notório, não é esta a oportunidade para tratar do objeto ou conteúdo da virtude da religião, mas apenas o de, apontando, no plano factual, a importância que tem a religião na vida das comunidades – nestas, “sempre se descobrem um palácio, um celeiro e um templo” (Lewis Mumford)–, pôr em relevo seu correntio papel formativo e nutriente da vida moral dos povos, o que é bastante sugestivo de sua custódia e prática pelos bons notários, a quem incumbe, pelo exemplo sobretudo, contribuir para a educação do povo e o bem comum.
Assim, o de que se cuida aqui não é do valor mesmo da religião, enquanto ela está dirigida à honra e ao culto de Deus – porquanto isto exigiria revolver o tema de sua verdade, na medida em que, por evidente, há religiões falsas; o que se vai aqui apontar é somente o valor da religião restritamente no território de seus efeitos na formação ética dos indivíduos e, ampliadamente, de toda a sociedade.
Ao lado de um sentido próprio do termo religião – scl., virtude moral cujo objeto é a prestação da reverência e do devido culto a Deus –, há uma acepção imprópria, que abarca, amplamente, desde sua ideia como fonte de normação social (cf. António Manuel Hespanha) até o conceito de religião civil (assim, p.ex., com Voltaire e Rousseau, em que, em vez do cultus Dei, busca-se o cultus hominis – v., neste sentido, as interessantes observações de Vallet de Goytisolo, em Metodología de las leyes). De maneira que, em seu significado bastante lato, sequer o tema da transcendência tem aqui maior relevo conceitual, podendo denominar-se religião um credo imanente, e até mesmo já se falou em uma conversão religiosa à inversa ou conversão invertida, uma espécie de “religião sem Deus” ou “teologia sem Deus” (Tierno Galván).
Em resumo, não se considerará nesta nossa exposição o conteúdo da religião – nem, pois, o tema de sua consonância com a verdade –, limitando-nos a, indicado o fato de ser a religião uma virtude, referi-la concisamente sob o aspecto cultural. Ou seja, trataremos da religião não sob a espécie própria da religião, mas como fenômeno cultural.
Não há notícia de sociedade política alguma, na trajetória da humanidade, em que não estivesse presente a prática de alguma sorte de honra e culto a Deus (cf., a propósito e de maneira ilustrativa, os autorizados estudos de Mircea Eliade e a história das religiões coordenada por Joseph Huby).
O já acima referido Lewis Mumford, na obra que pode ser, com justiça, considerada a vulgata da história das cidades, disse que, em suas origens, a técnica, a política e a religião eram inseparáveis na vida urbana, mas “foi a religião –diz ele – que assumiu a precedência e reclamou o primado (…)” (A cidade na história, 4.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 41), e é do mesmo autor a referência de que “a primeira utilização da muralha pode ter sido de natureza religiosa”: a defesa dos sagrados limites do têmenos (recinto sagrado), para, assim, “manter à distância antes os maus espíritos do que os inimigos humanos” (p. 44).
Ao longo da história, sempre a cidade será um lugar da religião, e isto leva a reconhecer a natureza antropológica da religião: é que um efeito geral e constante (a coexistência entre religião e cidade) não pode provir senão de uma causa também geral e constante, que, neste quadro, é a natureza do homem (neste sentido, Louis Salleron disse que o homem é naturalmente religioso, e, por sua vez, Tertuliano referiu ao homem naturalmente cristão).
Não é só, porém, que a religião seja algo próprio da natureza do homem, mas, sim, é algo que lhe diz respeito individual e socialmente, vale dizer que também se aclima à natureza política do homem (ou seja, sua inclinação natural a viver em sociedade). O fato desta persistência social ou política da religião responde bem à circunstância de ser a religião uma anexa da justiça, que, virtude social, supõe sempre, além da alteridade, a existência de um debitum.
No campo da sociologia da religião é iterativo o reconhecimento de seu influxo transformador, tanto do indivíduo, quanto da sociedade (cf., p.ex., Durkheim, Weber), e Anthony Giddens chega a falar de um papel revolucionário no cristianismo (decerto, este adjetivo precisaria ser melhor definido, mas, de toda a sorte, Max Weber refutou seja a religião uma força necessariamente conservadora). Por sua vez, Pitirim Sorokin, em Sociedade, cultura e personalidade, ao tratar do poder criador da religião, observou que, quanto mais influente seja ela, menos força criadora possuem os negócios (vale dizer, o ânimo de ganância). Isto põe à mostra o poder de contenção –ou temperança– desempenhado pela religião, tanto quanto se realça a virtude da fortaleza com o exemplo vívido das práticas religiosas (pense-se, p.ex., não só na história dos mártires da fé, mas na coragem dos cristeros mexicanos ou dos carlistas das Espanhas).
Sumariando:
1- a religião é uma prática universal da humanidade, com que se reconhece ser um próprio da natureza humana;
2- não só, porém, da natureza individual do homem, senão que também comparte de sua natureza política ou social;
3- a religião possui força criadora seja na ordem individual, seja na ordem social;
4- a religião, frequentemente (mas nem todas as religiões!), contribui para as virtudes individuais e sociais.
Fonte: CNB-PR
Foto: Studio Mary Soares