Fontes do direito notarial e registral (vigésima-nona parte)

Des. Ricardo Dip

         No âmbito de nossas referências ao tema do «costume» como fonte do direito (e, para nosso, caso, de modo particular, como fonte do direito notarial e do direito registral), cuidaremos agora de uma pequena incursão num dos pontos doutrinários que, a propósito do costume, pode encontrar-se na obra de Santo Tomás de Aquino.

         O que neste passo se quer recortar de sua importante doutrina −que é, sobretudo, teológica−, mas que, neste passo e ainda em muitos outros, interessa muito ao campo jurídico, é (i) a da possível mudança das leis diante da estabilidade ordinária dos costumes, e (ii) o submetimento dos costumes à instância moral.

         A matéria vem tratada na primeira subparte da segunda parte da Suma de teologia, questão 97.

         No art. 1º dessa questão 97 da I-II da S.th., S.Tomás indaga se a lei humana pode ser modificada, e argumenta, calcado na autoridade de S.Agostinho que «a lei temporal, embora justa, pode, no decurso do tempo, ser justamente mudada», e, em resposta a uma objeção (ad2), diz na ordem das coisas mutáveis nada pode haver que permaneça imune às mudanças.

         Todavia, do só fato da suscetibilidade de a lei modificar-se não segue a conclusão de que deva mudar-se com facilidade. No sed contra do art. 2º dessa mesma questão 97, S.Tomás invoca as Decretais: «É ridículo e desonra bastante abominável sofrer a destruição das tradições que recebemos, desde a antiguidade, dos nossos antepassados». [As DecretaisDecretales vel Liber Extra− do Papa Gregório IX são um documento de direito canônico publicado em 1234]. E, adiante, em resposta a uma objeção: as leis podem mudar-se, «não, todavia, porém para darem lugar a qualquer melhoria, e, sim, quando tenha como causa alguma grande utilidade ou necessidade» (ad2), poque, como disse Aristóteles, « as leis recebem do cos­tume sua máxima eficiência» (ad1).

         Vejam-se ainda esses excertos do art. 3º da questão 97:

•        «A lei natural e a divina procedem da vontade divina, como já se disse. Por isso não pode ser mudada pelo costume procedente da vontade humana, mas só por autoridade divina. Por onde, nenhum costume pode ter força de lei contra a lei divina ou a natural. Já disse S.Isidoro: «<O costume deve ceder ante a autoridade; a lei e a razão devem triunfar sobre os maus costumes>» (ad1);

•        «(…) as leis humanas são deficientes em certos casos. Por isso é possível, às vezes, em caso de deficiência da lei, agir fora dos seus termos, sem ser mau o ato assim praticado. Ora, a multiplicação de tais casos, por alguma mudança existente nos homens, manifesta, pelo costume, que a lei já não é útil, assim como isso mesmo se manifes­taria se uma lei contrária fosse verbalmente promulgada. Se, contudo, ainda permanecer a mesma razão, pelo qual a primeira lei era útil, não é o costume que suplanta a lei, mas a lei, o costume. Salvo talvez se a lei for considerada como inútil só por não ser exequível, de acordo com o costume pátrio, o que era uma das condições dela. Com efeito, é muito difícil remover o costume do povo» (ad2);

•        «O povo, em que se realiza o costume, pode ter dupla condição. Se for livre e capaz de legislar, vale mais o con­senso de toda a multidão, para o fim de se obser­var alguma disposição manifestada pelo costume, do que a autoridade do chefe, que não tem o poder de legislar senão enquanto representa a personalidade do povo. De que segue, embora pes­soas singulares não possam legislar, a totalidade do povo o pode, contudo. Outro caso é o do povo que não tem poder livre de legislar para si ou de remover a lei estabelecida por um poder superior. Nesse caso, todavia, o próprio costume, que prevalece na multidão, adquire força de lei, por ser tolerado por aqueles a quem per­tence impor a lei ao povo. Por isso mesmo, portanto são considerados como tendo aprovado o que o costume introduziu» (ad3).