Fontes do direito notarial e registral (vigésima-sétima parte)

Des. Ricardo Dip

         Dando continuidade a este nosso capítulo acerca das fontes do direito notarial e registral, tratando do costume, cuidaremos agora, concisamente, de sua relação com a lei.

         É tradicional −e todos já vimos essa lição nos cursos acadêmicos− tripartir-se o conceito de costume, tomando como critério de divisão seu relacionamento com a lei.

         Fala-se em costume secundum legem, costume præter legem e costume contra legem.

         O costume secundum legem é o em que há sua coincidência com a lei. Em verdade, aí se tem o quadro de uma só regra com dois títulos ou fontes: a lei e o costume (assim se lê na doutrina de José de Oliveira Ascensão).

         Já no costume præter legem, dá-se nele um acréscimo de matéria que não se encontra na lei.

         Por fim, o costume contra legem conflita com a lei, ou seja, ambas essas fontes se opõem em contradição. Não se trata aqui, propriamente, do que se designa com o termo «desuso», porque o costume contra legem só se caracteriza com a convicção da obrigatoriedade da conduta oposta à da lei que com ele conflita. Já o «desuso» se contenta com o fato negativo de a regra legal não ser aplicada (entre nós, houve uma interessante referência às «leis que não pegam»).

         É manifesto que, afastada a só questão de relegar o costume secundum legem à categoria de um costume interpretativo, implicitando sua subordinação à lei, não há problemas graves no relacionamento entre essa espécie costumeira e a lei.

         Diversamente, há interpelantes desafios na relação da lei com o costume præter legem e, sobretudo, com o costume contra legem.

         De logo, não parece bastante invocar um preceito de lei para, por sua voz, afirmar a secundariedade do costume. Assim, o disposto no art. 4º de nosso Decreto-lei 4.657/1942 (de 4-9) −a antiga Lei de introdução ao código civil (hoje intitulada Lei de Introdução às normas do direito brasileiro− que enuncia: «Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito». É verdade que, à míngua de um advérbio («somente», «apenas», «exclusivamente») nesse texto legal, seria possível pôr em debate o argumento de que a invocação do «costume» estaria reduzida à hipótese de omissão da lei −e ainda assim, depois de falhar o recurso à analogia. Mas salta aos olhos que, nesse confronto lei versus costume, não tem sentido que a lei se proclame superior, como não o tem que a proclamação de superioridade se faça pela só força da «voz muda» do costume.

         Em nossos dias, a perseverança implícita de duas características de nosso mundo jurídico parece pender a solução do conflito para a prevalência da lei. Essas características são o estatismo (ou estatalismo) e o positivismo legalista. Nessa direção, um antigo julgado do STF, proferido em 1965, assim ditava: « O costume contra legem não pode ser fundamento de decisão judicial, porque a lei só se revoga por outra lei» (RE 58.414).

         Deixaremos para a próxima explanação algum breve exame sobre as mais relevantes correntes doutrinárias acerca do assunto, mas, de pronto, deixemos dito que não há uma solução uniforme acerca do tema, senão que a variedade dos segmentos do direito encontra ocasião para uma pluralidade de aplicações.

         Assim, por exemplo, no direito internacional público, é de grande relevo, ao lado das convenções, a adoção dos princípios recrutados dos costumes.

         Diversamente, no direito penal, houve uma forte resistência ao reconhecimento do chamado «costume abolicionista», que levaria à descriminalização de alguns delitos (cf., p.ex., no STF: HC 98.898 e RHC 115.986).