(da série Registros sobre Registros n. 397)
Des. Ricardo Dip
1.197. Continuemos a tratar do tema do averbamento da separação de dote, matéria prevista na Lei 6.015 −item 9º do inciso II do art. 167−, mas que tem a assediá-la a lacuna do Código civil de 2002 quanto a disciplina alguma acerca do dote.
Opinamos, na exposição anterior (Reg-Reg 396), que um contrato de dote referente a matrimônio celebrado antes da vigência do mencionado Código de 2002 poderia levar-se a registro do cartório de imóveis. Isso porque o art. 2.039 desse mesmo Código −«O regime de bens nos casamentos celebrados na vigência do Código Civil anterior, Lei nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916, é o por ele estabelecido»− hospeda o regime dotal disciplinado por nosso Código de 1916.
Mas há uma segunda questão, que deixamos alinhada na explanação anterior: poderia ainda contratar-se e registrar-se um ajuste de dote após a vigência desse mesmo Código de 2002?
Regina Beatriz Tavares da Silva, não deixando embora de afirmar que, em nosso direito positivo, o dote constitui «uma verdadeira superfetação, já que não entrou absolutamente em nossos hábitos», remeteu-se à doutrina de Clóvis Beviláqua, para relembrar-nos dos elementos fundamentais do dote, a saber:
• a incomunicabilidade dos bens dotais,
• sua administração pelo marido, e
• sua restituição à mulher (ou ao dotador, se terceiro), extinta que seja a sociedade conjugal (in Curso de direito civil, de Washington de Barros Monteiro, atualização, 2004, vol. 2, p. 228).
À luz dessas características é bastante provável que um negócio jurídico, tanto as satisfaça, não conflite com as disposições compulsórias do Código civil de 2002, em cujo art. 1.639 se lê: «É lícito aos nubentes, antes de celebrado o casamento, estipular, quanto aos seus bens, o que lhes aprouver» (caput).
Assinale-se que o pacto antenupcial, ao estabelecer a dotação, não poderá ofender norma legal de caráter impositivo: «É nula a convenção ou cláusula dela que contravenha disposição absoluta de lei» (art. 1.655). Assim, p.ex., deve observar-se a exigência legal de escrituração pública (art. 1.653: «É nulo o pacto antenupcial se não for feito por escritura pública, e ineficaz se não lhe seguir o casamento»), bem como atender-se ao registro do título institutivo: «As convenções antenupciais não terão efeito perante terceiros senão depois de registradas, em livro especial, pelo oficial do Registro de Imóveis do domicílio dos cônjuges» (art. 1.657).
Desse modo, já o havíamos afirmado em exposição anterior, não parecem proibidos a celebração e o registro de um contrato de dote −e até mesmo quando não se venha a nomear no pacto−, exatamente por, na forma da lei, ser «lícito aos nubentes, antes de celebrado o casamento, estipular, quanto aos seus bens, o que lhes aprouver» (art. 1.639).
Nada aparenta impedir, com efeito, que, com a forma de uma doação sub conditione resolutionis, possa estabelecer-se o dote, porque a resolução atenderia a certa espécie da cláusula de reversão. O dote, com efeito, constitui uma propriedade resolúvel, de maneira que tem aplicação, a seu respeito, o que dispõe o art. 1.359 do Código civil de 2002: «Resolvida a propriedade pelo implemento da condição ou pelo advento do termo, entendem-se também resolvidos os direitos reais concedidos na sua pendência, e o proprietário, em cujo favor se opera a resolução, pode reivindicar a coisa do poder de quem a possua ou detenha».
Isso, entretanto, não responde ainda a uma terceira questão. Está bem, registra-se o dote −item 27 do inciso I do art. 167 da Lei 6.015−, mas pode ainda averbar-se a separação do dote?
Não se pode recusar, à partida, o quanto de controvérsia que poderá levantar-se acerca dessa questão. Controvérsia, de toda a sorte, pouco explicitada, porque raríssima há de ser em nossos dias, no Brasil, a ideia de pactuar-se o dote.
Remanesce o problema, como quer que seja, no plano teórico, no campo de uma discussão acadêmica, o que sempre tem, quando menos, uma função prudencial de preparar eventuais soluções futuras.
Uma vez que se admita, entre nós, a viabilidade jurídica de registrar-se um contrato de dote −celebrado esse pacto ainda após a vigência do Código civil de 2002−, é corolário dessa admissão que se possam extrair os efeitos jurídicos que correspondam a esse ajuste.
Ora bem, entre esses efeitos está o da restituição dos bens dotais −à mulher ou a eventual terceiro dotador−, tanto que extinta a sociedade conjugal. Já o fizemos ver, isso corresponde à doação sob condição resolutiva.
No Código civil de 1916 previa-se:
«Art. 308. A mulher pode requerer judicialmente a separação do dote, quando a desordem nos negócios do marido leve a recear que os bens deste não bastem a assegurar os dela; salvo o direito, que aos credores assiste, de se oporem à separação, quando fraudulenta.
Art. 309. Separado o dote, terá por administradora a mulher, mas continuará inalienável, provendo o juiz, quando conceder a separação, a que sejam convertidos em imóveis os valores entregues pelo marido em reposição dos bens dotais.
Parágrafo único. A sentença da separação será averbada no registro de que trata o art. 261, para produzir efeitos em relação a terceiros.»
Um mesmo quadro factual −«quando a desordem nos negócios do marido leve a recear que os bens deste não bastem a assegurar os dela» [ou seja, da mulher]− pode justificar a providência cautelar de separarem-se os bens submetidos à condição resolutiva, é dizer, ao pacto de restituição à doadora.
Essa tutoria de cautela demanda via judicial. É antes e primeiro um problema a apreciar-se e decidir-se em âmbito jurisdicional.
Todavia, suposto que haja um título judicial para essa separação do dote (ou do doado, se se preferir dizer assim), parece que deva admitir-se a averbação que corresponda.
Por isso, meo iudicio, ainda vigora a regra do item 9º do inciso II do art. 167 da Lei 6.015, permitindo-se o averbamento da separação do dote, sempre com apoio em título judicial.