Des. Ricardo Dip
A noção lata de «lei» −abrangendo diferentes atos normativos gerais e abstratos, além de alguns de caráter singular (com efeitos concretos)− é, de fato, muito extensa, no quadro das notas e dos registros públicos.
Antes mesmo de incursionarmos pela amplitude das variadas normativas que, entre nós, têm influência no campo das notas e dos registros, parece oportuno cogitar da relevância da historicidade das normas para que a atividade notarial e registral melhor se habilite a atender ao bem comum.
A larga história do notariado latino testemunha-lhe, ao lado da perseverança que lhe confirma a necessidade política, uma circunstância rara na vida dos povos, econômicos que são eles em conceder presunções genéticas de autoridade.
A comunidade −ela toda, não os estados, que são parte desse todo, menos ainda seus governos−, a comunidade foi que exigiu, ao modo de um conatural histórico −ou, como se diz um tanto impropriamente, de modo espontâneo e contínuo−, a memória autorizada do tempo que passa. E não tendo maneiras de sempre autorizar tantas lembranças por meios objetivos −o que sempre ou um tanto menos que sempre redundaria numa incessante renovação de provas e contraprovas−, a comunidade conveio, há muitos e muitos séculos, e por sempre continuou a convir em que havia de depositar nos sentidos externos e internos de uns poucos e seletos homens a fonte de uma expressão publicamente autorizada da realidade, quase sob a forma de um sacramento. Essa presencialidade notarial do passado −a instituição de um contexto comum ao presente e ao pretérito− não apenas mitigou, na história, o não absolutamente de todo afastável caráter de confronto ou de jogo que define o futuro, mas tornou mais possível de algum modo a amorabilidade do passado e do futuro, pois, como fez ver o genial Afonso Botelho, o amor testemunha e espalha uma claridade unitiva do precedente ao tempo que ainda virá.
Entre esses poucos homens dotados do poder de para o futuro guardar o passado, ao notário se tem concedido um lugar de preeminência.
Todas as fés públicas jurídicas, se não são a notarial, são derivadas dela, são suas partes potenciais. Assim, a fé pública do notário está elevada à emérita situação de ser o primado analógico de todas as fés políticas, porque o notário sempre a exercita conhecendo diretamente os fatos, é dizer que autentica ou verifica os fatos como realidade (ou verdade) porque os capta por seus próprios sentidos −de visu et auditu suis sensibus. Coisa que não fazem, ao menos de modo absoluto, os demais titulares de fé pública, estes que, com frequência, atuam sine causa cognitione, exatamente porque sua potestade não está chamada a presenciar fatos.
Por mais se reconheça que a crise de nossos tempos é muito mais do que jurídica, é uma crise moral e, além disso, uma crise lógica −a fobia da razão− e metafísica −o aversamento do ser e a consequente repugnância da natureza, não por isso a crise global pode abdicar do empenho dos juristas em preservar e acrescentar a tradição vivificante de um passado −bem o disse Víctor Pradera− que se fez presente e tem virtude para ser futuro, guardando-lhe os dons eminentes de seus modos, de suas liberdades concretas, de seus direitos naturais e históricos, cujo abandono é uma grave infidelidade contra nossos Maiores.
Estando os notários −e isto muito intensamente− chamados a responder pela historicidade da pátria, pelos bons costumes, pela lei natural, vêm-se pontualmente agora tentados, a um só tempo, pela deficiência e pelo excesso de seus poderes. Nisso pode resumir-se, com efeito, em dado aspecto, o núcleo do drama contemporâneo da atividade notarial: o de que, de um lado, a independência jurídica do notário não se debilite a ponto de praticamente demitir-se e, em contrapartida, que ela não se avantaje à lei e não a dobre e submeta qual se a única norma de agir fosse a subjetividade de quem age. Tem-se ideia do preço dessas tentações, com a célebre lição ciceroniana de que autoridade que se aparta da lei não tem valor de autoridade.
Pode estranhar que esses riscos fundamentais aflitivos do estatuto ontológico do Notariado, vícios opostos entre si, sejam não apenas seduções simultâneas, mas frutos de um só plexo revolucionário de ideias que, desde a medieval negativa dos universais, oscilou entre o empirismo e o racionalismo, até desaguar no mais despótico dos relativismos −este sob o qual nos toca já agora viver−, relativismo que traz em seus escombros a morte de Deus, e a morte do verdadeiro e do falso, e a morte do bem e do mal, e a morte do direito e do injusto, e que assina a supressão do vazio da vida e da angústia asfixiante das ações humanas intransitivas pela produção febril de novidades. Deus está morto, viva a técnica, viva a eficácia −lasciate ogni speranza, voi che entrate! Quem não vê? Nessa trilha, é o homem que está morto.
Prosseguiremos.