(da série Registros sobre Registros, n. 383)
Des. Ricardo Dip
1.150. Prevê o item 2º do inciso II do art. 167 da Lei brasileira 6.015, de 1973, a averbação, por meio de cancelamento, «da extinção dos ônus e direitos reais».
O texto legal parece dizer menos do que significa, abrangendo, em caráter supletivo, diferentes hipóteses de retificação (lato sensu). Ilustrativamente, considerem-se o caso do encerramento de matrícula e ainda a previsão do art. 213 da mesma Lei 6.015.
Pode conceituar-se o «cancelamento registral», o assento da extinção total ou parcial, formal ou material, de outro e anterior assentamento.
Total, quando o cancelamento extingue por inteiro a inscrição a que se destina. Parcial, quando a extingue somente em parte (p.ex., excluindo cláusulas de um negócio que continue, no mais, a vigorar). Formal, quando não se reporte ao conteúdo, preservado este em outra inscrição (v.g., nos casos de bis in idem registral, cancela-se o duplicado, à vista do problema formal, mantendo-se o conteúdo presente em diverso assento). Material, quando aflige o conteúdo do assento que se cancela.
O cancelamento é tipicamente uma inscrição negativa, porque visa a excluir −repita-se: no todo ou em parte, pela só forma ou pela matéria− um assento anterior.
Distingue-se, por isso, do encerramento, porque este último não tem função exclusora, mas de simples declaração. O encerramento não é inscrição positiva, nem negativa, sequer mista, mas de caráter neutro. Assim, encerra-se, v.g., uma dada matrícula, por exaustão de seu objeto (cogite-se de segregações que esgotem, nessa matrícula, a área disponível do imóvel a que ela se refira), ou ainda, noutro exemplo, se um imóvel passa a ser objeto de diversa circunscrição imobiliária, encerra-se a matrícula aberta no ofício imobiliário que perdeu competência para as inscrições relativas a esse imóvel.
O cancelamento distingue-se do bloqueio, porque , entre outros motivos,o primeiro é inscrição de caráter definitivo, ao passo em que o bloqueio é sempre inscrição temporária.
O cancelamento pode ser direto e explícito −quando seu texto indica a extinção correspondente; e pode ainda ser indireto e implícito, quando cancele um assento anterior, sem expressar diretamente a extinção: p.ex., o registro de uma compra e venda cancela, de modo indireto e implícito, a assinação dominial constante de assentamento anterior (esta hipótese é controversa; há quem pense tratar-se de encerramento; talvez a solução esteja em considerar que se cuide um cancelamento secundum quid −referente à situação jurídica publicada; e de um encerramento, por outro aspecto, quando ao fato jurídico inscrito).
Admitida que seja a compreensão mais extensa do significado normativo do item 2º do inciso II do art. 167 da Lei 6.015, temos agora de considerar as diferentes categorias de retificação registral (lato sensu).
Como já ficou dito noutra parte, a retificação registral consiste no acréscimo de perfeição ao ente que deveria possuí-lo, de conformidade com seu tipo constitutivo. Assim, tratando-se de um acréscimo de perfeição que deve existir em um dado suposto, a retificação registral é algo que se dirige a corrigir uma privação (e não uma carência, porque esta não diz respeito a algo que deva existir numa dada natureza: p.ex., de um homem que padeça de falta de audição diz-se que sofre de uma privação; mas de esse mesmo homem não ter asas para voar não resulta uma privação, e, sim, uma carência).
Observe-se ainda que, quando se fala que a retificação registral consiste num acréscimo de perfeição, isso não significa que ela deva ser sempre positiva. Há acréscimos de perfeição mediante supressões. Se alguém, p.ex., padece de uma formação osteofitária que lhe impeça caminhar, suprimir o obstáculo é um acréscimo de perfeição, é vencer uma privação. Também assim se dá no registro: ao passo em que a retificação positiva corrige um déficit registral, já a retificação negativa corrige um excesso do registro (v.g., quando o registro objeto tem algo que modifica o objeto da registração).
Em todas as hipóteses de retificação registral, o parâmetro de controle é o da verdade, ou, em outras palavras, o da realidade das coisas. É por isso que tantas vezes se tem afirmado ao largo da história do registro que ele é um «espelho da realidade».
Todavia, nos tempos pós-modernos (em que se recusa a existência da verdade), assiste-se a uma tendência de variação do parâmetro de controle das retificações registrais, passando a admitir-se a só declaração de vontade dos interessados, à margem de sua consonância com a realidade das coisas.
Há três espécies de −chamemo-la assim− dissonância registral (gênero próximo das retificações no registro). A dissonância, por sua vez, abrange as espécies (i) da discordância registral, (ii) do erro registral e (iii) da inexatidão registral.
Consiste a discordância registral na superveniente desconformidade entre as realidades factuais e as realidades registrárias. Por exemplo, consta de uma dada matrícula que Tício é o proprietário de um imóvel, e esse registro, ao expedir-se, correspondia à realidade factual. Adiante, contudo, morre Tício, e quando se procede ao registro, v.g., de uma partilha ou de uma adjudicação de seus bens, retifica-se, nessa matrícula, uma discordância registral. Ao registro que, a um tempo, estava afeiçoado à realidade, sobreveio uma ocorrência fática que o fez discordar da verdade.
Diversamente, o erro registral não é uma dissonância superveniente, mas um déficit originário da atuação registral. É dizer que, desde a origem do mesmo registro, já se estampava uma dissonância formal ou material perante a realidade.: p.ex., faz-se constar de um dado registro ser Tício o adquirente do imóvel, quando, na verdade, Semprônia é a verdadeira adquirente indicada no título apresentado ao ofício imobiliário (hipótese de erro material); o registrador, ao assinar uma inscrição, fruía de férias e, pois, não poderia subscrever o ato (hipótese de erro formal).
A classe das inexatidões registrais é muito ampla, e a doutrina é variadíssima a seu respeito.
Para logo, alguns entendem a inexatidão registral com o sentido que aqui se atribuiu à dissonância registral. Vale dizer, a inexatidão seria um gênero.
Outros especificam a inexatidão no âmbito do erro registral, para hospedar como inexatidões, entre outras hipóteses, as relativas a títulos que nunca se constituíram verdadeiramente ou que já se haviam extinguido ao tempo de seu registro: p.ex., (i) inscrição de títulos falsos ou nulos, e (ii) de títulos já rescindidos, ou caducos, ou objeto de renúncia, ou relativos a imóveis afligidos por expropriação.
Prosseguiremos.