Des. Ricardo Dip
Vem a propósito que Jean-Claude Magendie, em seu estudo L'américanisation du droit ou la création d'un mythe, observou que "les expressions mêmes du droit américain ne sont pas sans influer sur la terminologie employée dans plusieurs branches de notre droit, singulièrement en droit boursier et plus généralement en droit des affaires…" (no já referido número 45 dos Archives de philosophie du droit, p. 13).
E esta observação de Magendie vem a calhar-nos, porque de um tempo a esta parte, alguns importantes doutrinadores brasileiros deram-se a dizer que o registro de imóveis brasileiro é um registro de direitos e não um registro de títulos.
Isto está bem e está mal. Sob diverso aspecto, é claro. Está bem para a terminologia anglo-saxã, que compreende o «registro de títulos» como simples seu depósito ou custódia. Mas não está bem segundo a terminologia habitual no Brasil. Para nós, o registro de imóveis é, de comum (vale dizer, com sua tendencial eficácia constitutiva), um registro de títulos materiais que, mediante o registro, tornam-se direitos reais. Desde a década de 80 do século passado, sob a inspiração da doutrina de Carlos Ferreira de Almeida, parecemos solidar no discrimen entre o que se registra (fato, ato ou negócio) e o que emana desse registro, ou seja, o que se publica (é dizer, o status jurídico).
Agora parece vivermos muito extensamente sob a influência do american way of writing em contraste com o usus loquendi nacional. Já não nos bastava que nossos vernáculos «falso», «falsidade», «mentira» fossem substituídos por isto que é uma onda agora incontível de falar-se e escrever-se: fake news.
O problema da falta de inocência das palavras é que elas terminam por interferir nos conceitos e, adiante, nas realidades. O direito penal das Espanhas, por exemplo, teutonizou-se (mais ainda: protestantizou-se) graças à importação de professores germânicos. Ora, a constituição do acervo de palavras de qualquer língua, segundo lição de Gladstone Chaves de Melo, provém de três fontes, que são a continuidade linguística, a importação estrangeira e a formação vernácula (Iniciação à filologia e à linguística portuguesa, Rio de Janeiro, 1981, p. 149), e é manifesto que essa importação estrangeira se justifica quando se trate de uma invenção própria do estrangeiro, mas não para, por meio de simples modismo −e, lembremo-nos, as palavras não são inocentes, o que vai até ao exagero de dizer-se que les mots sont les maux−, chegar à descontinuidade da linguagem nacional.
Já Camões, em Os Lusíadas, disse o que a deusa Vênus achara do falar lusitano: "E na língua, na qual quando imagina,/ Com pouca corrupção crê que é a Latina" (I, 33). carolina michaëlis de Vasconcelos, com sua consagrada autoridade de filóloga, ensinou que falta ao rigor absoluto dizer-se "que o português provém do latim", e acrescentou: "Rigoroso é dizer que o latim continuava a existir no português, modificado evolutivamente segundo leis orgânicas que sofrem exceções apenas quando outras leis de mais força atuam nelas" (in Lições de filologia portuguesa, Lisboa, 1946, p. 6). Também, entre nós, o aqui antes já mencionado Gladstone Chaves de Melo afirmou não ser exato dizer que as línguas românicas "provêm ou descendem do latim, senão que elas são o latim nos seus diversos aspectos atuais" (o.c., p. 65).
Giovanni Turco, professor da Universidade de Udine, tratando da relação entre palavras, conceitos e coisas, observou, em recente publicação, que a linguagem não pode prescindir das questões que digam respeito à verdade e à responsabilidade ética da comunicação: "La responsabilità della comunicazione socialmente rilevante −eg ogni comunicazione, in radice, ha carattere sociale in quando richiede l'alterità, sulla premessa della naturale razionalità e socialità umana− emerge como dato originario e basilare, se si pone mente alla intrinseca funzionalità sociale del linguaggio" («Occidente»: una nozione da problematizzare, in "Anales de la Fundación Francisco Elías de Tejada", ano XXVIII, 2022, p. 94).
Pois bem, que se queira, muito excepcionalmente e com peculiar justificação, usar uma terminologia anglo-saxã para ramos do direito −assim, o notarial e o registral− que pouquíssimo ou nada têm, entre nós, de influência americana, conceda-se. Mas que isto se esclareça numa notinha, ao menos, de rodapé.