Des. Ricardo Dip
Longe de ter o objetivo de uma dada musealização (salientemos que, embora não esteja este vocábulo alistado no Vocabulário Oficial da Língua Portuguesa admitido pela Academia Brasileira de Letras, consta, porém, do rol adotado pela Academia de Ciências de Lisboa), repete-se: longe de visar à musealização do registro imobiliário brasileiro, há quem se oponha −e é meu caso (vae mihi!)− aos revoluteios de um puro novidadismo conceitual e terminológico nos registros públicos: coisa diversa é a revivência das raízes de nossos registros, instaurando-se (ou restaurando-se, quando o caso) noções e termos próprios com seu correspondente enraizamento. Ou seja, essa revivência registral não se dirige a conservar, espartilhadas, as atividades registrais prático-práticas, como se daria, por exemplo, com quem almejasse impedir o uso de novos e avançados meios tecnológicos, ou com quem não quisesse importar, sem mais, o estrangeirismo de turno para modificar a essência mesma de nossas instituições, mas, isto sim, para preservar a substância institucional dos registros e afirmar o que parece mais ou menos óbvio: que meios são meios e não fins, e que temos nossa identidade registral.
Nosso registro imobiliário não é um artefato sem raízes históricas. Gestou-se descendente do notariado latino e especializou-se gradualmente como românico, como hispânico, como hispano-lusitano e, ao fim, tomou forma em sua fisionomia brasileira. Se parece termos bons motivos (e por certo que os temos) para orgulhar-nos de nosso contemporâneo registro de imóveis, parece bem que devamos envaidecer-nos de sua história e ufanar-nos de nossos Maiores.
Em meio aos muitos temas que por agora assediam de maneira revolucionária nosso registro imobiliário, é sobressalente o que pode bem nomear-se «americanização» registral, por mais que, em rigor, essa «americanização» seja indício de uma dada «mundialização» ou «globalização uniformista» da instituição do registro de imóveis (e também da do notariado). O assunto não é novo, nem é local: já em 2001, na consagrada série Archives de philosophie du droit, publicou-se uma revista com o título L'américanisation du droit, e sucederam-se novos estudos sobre o tema (p.ex., os publicados em 2013, sob a coordenação de Pascal Mbongo e Russell Weawer). Não é esta a ocasião para passar em revista as questões todas compreendidas nesta «américanophilie" denunciada na França, mas ensaiemos umas tantas e poucas referências a seu respeito no ambiente brasileiro.
Comecemos por lembrar que nossos pensadores da política e nossas instituições públicas se mostraram, ao largo do tempo, mais inclinados à importação de modas do que nosso direito privado e seus estudiosos. Isto o fez ver, de maneira precisa, José Pedro Galvão de Sousa nas páginas de sua História do direito político brasileiro. Bastaria recordar, a título de ilustração, que, logo após o golpe militar de 1889, nosso primeiro Código político republicano trazia por nome «Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil», o que recebeu de Ruy Barbosa (insuspeito, neste passo) o comentário de a federação brasileira ser a reunião das coisas que já estavam antes reunidas.
Tem-se agora à vista, entretanto, alguma influência de americanismo também na esfera do direito privado. É manifesta a paulatina deslatinização do notariado brasileiro, e é não menos notório o esvaziamento dos registros de imóveis com a centralização de dados postos sobre a gerência de entidades particulares, neste último caso atendendo-se ao que se pode designar de hibridismo liberal-socialista, porque correspondente, de um lado, a uma evasão privatística (ou seja, a outorga de atividades registrais a sociedades privadas), e, de outro lado, a um submetimento dessas sociedades à outorga pontual da administração pública (incluindo o tema de seu custeio) e à fiscalização singular de suas atividades.
A esse propósito, a Corregedoria Geral da Justiça de São Paulo expediu fundamentada manifestação de dois de seus juízes assessores −Letícia Fraga Benitez e Josué Modesto Passos−, observando que a apresentação ao registro de imóveis de simples extrato de título, como se previu em nova normativa nacional, alterou o modelo de qualificação jurídica que tinha antes sempre por objeto o título formal que era levado ao registro. Ora, dizem esses juízes, esse extrato "foi implementado para agradar ao ranking Doing Businnes, do Banco Mundial…", avaliação esta que se encerrou, prosseguem, "por não ser séria. (…) O ranking foi encerrado há poucos meses pelo Banco Mundial, em razão de comprovados favorecimentos, manipulações e conflitos de interesses". E adiante, continuam os juízes: "Por que, então, defender o extrato? A obrigatoriedade do extrato, cumulada com uma proibição dos registradores receberem títulos diretamente cria, como resultado, um banco de dados de valor incalculável e já estruturado. Esse banco de dados fica na posse de intermediários (bancos, operadores de registros públicos, associações de registradores) e sua utilização é opaca para a sociedade" (parecer no processo 2022/100217, aprovado pelo Corregedor Geral da Justiça paulista, Des. Fernando Antonio Torres Garcia, em 23-1-2023).
Dificilmente poderia descrever-se melhor do que o fizeram esses dois magistrados o quadro resultante desta conjunção entre centrais «privatizadas» e extratos substituintes de títulos.
Mas talvez seja ainda de aqui apreciar esse tema da «americanização» do direito registral brasileiro mediante uma referência tópica que, numa primeira vista, poderia parecer negligenciável, não se dera, contudo, que a experiência vital convença de as palavras não serem inocentes ("nous n'avons jamais cru −escreveu Michèle-Laure Rassat− que les mots sont inocents"). No filme Life of Brian (dirigido por Terry Jones), seu protagonista, Brian, é claro, pichava as muralhas da cidade de Jerusalém com estes signos: “Romanes eunt domus” (o que ele pretendia significasse “Romanos, ide para casa”); um centurião surpreendeu Brian e levou-o a persuadir-se (com puxões de orelha) dos erros de sua escrita, corrigindo-a, ao fim, com os dizeres “Romani ite domum”, que o centurião obrigou escrevesse Brian por cem vezes sobre as muralhas de Jerusalém. É muito provável que o filme visasse a criticar o modo de ensino da língua latina, mas o fato é que esta cena estampou a liberdade de expressão política entre os romanos, sem embargo da intransigência com a perversão do latim, exatamente porque isto implicaria subverter a própria identidade romana.