Registro da certidão de regularização fundiária (CRF)
(da série Registros sobre Registros, n. 374)
Des. Ricardo Dip
1.140. Incluiu-se na Lei 6.015, de 1973, com o advento da Lei 13.465, de 11 de julho de 2017, a previsão expressa do registro stricto sensu da certidão de regularização fundiária (CRF).
À ideia ampla de «regularização fundiária» concorrem diferentes perspectivas −econômica, histórica, sociológica, moral. etc.−, entre elas a jurídica, em que avulta a regularização registral, ou, mais exatamente, a regularidade registral de um imóvel. Tal o disse João Pedro Lamana Paiva, essa regularização registrária
«permitirá o acesso de todo imóvel ao sistema registral e ao mercado formal, o que interessa (i) aos Municípios (controle urbanístico e arrecadação de tributos), (ii) ao posseiro (poderá acessar o sistema financeiro e, com isso, promover melhorias no imóvel e na coletividade em face do seu trabalho), (iii) à sociedade em geral (conhecerá com precisão os direitos que precisa respeitar) e (iv) ao sistema registral (poderá oportunizar segurança jurídica a todos).»
Disso −desse ingresso do imóvel no sistema de publicidade jurídica oficial e de acesso regular ao mercado imobiliário− advém, ordinariamente, o atendimento a benefícios econômicos (individuais e comunitários) e −supõe-se− de adequação ética.
Assinale-se que, ainda no aspecto jurídico, a regularização fundiária possui diferentes modos de atuação, não sendo demais falar-se em «tipologia da regularização», para assim dar abrigo, por exemplo, às regularizações de loteamentos e de desmembramentos, às retificações de registros, às demarcações, etc.
Tem-se prontamente do só uso do vocábulo «regularização» −ou da palavra «regularidade»− a ideia de conformação com uma regra. Com a diversidade dos pontos de vista de acercamento do conceito de «regularização fundiária» pode dar-se que essa «regra» seja apenas a de um fenômeno sociológico, de um fato histórico, de um fato com efeitos econômicos, ou de um fenômeno avaliado na ordem ética. Já, entretanto, no plano jurídico, a «regularização« atende a uma ideal ordenação comunitária de condutas, que pode não ser um fenômeno atual (quando essas condutas se afastam da ordenação). Essa ordenação comunitária pode provir tanto de atos normativos expressos, quanto de costumes, e tem (ou supõe-se que tem), à raiz, uma ordem de valores.
De algum modo pode dizer-se que a regularização fundiária, em sua perspectiva ou acepção jurídica, termina por ser −ou ao menos deveria ser− a congregação formal dos valores morais, econômicos, históricos, etc. para a melhor ordenação política e social da propriedade imobiliária. Assinale-se, por sua muita importância, que a regularidade fundiária exige, em primeiríssimo lugar, a regularidade ética, ou, melhor dito, ético-jurídica, que começa pelo respeito à lei natural.
Tanto mais isso importa salientar, quando o constitucionalismo liberal se lançou a impor «um conjunto de meios idôneos para alcançar fins de caráter eminentemente político, como substituir o direito natural (…)" (Pietro Giuseppe Grasso, El problema del constitucionalismo después del estado moderno, ed. Marcial Pons, Madri -Barcelona, 2005, p. 15), e, mais adiante, o neopositivismo constitucional elevou a constituição ao papel de uma «religião civil» do estado (Pablo Lucas Verdú)», pretendendo sejam as constituições uma «positivização do direito natural» (cf. Rui Medeiros, A decisão de inconstitucionalidade, ed. Universidade Católica, Lisboa, 1999, p. 180).
Ao revés disso, e em prol de uma axiologia suprapositiva (que se faz, às vezes, transpositiva −cf. Jorge Miranda, Manual de direito constitucional, ed. Coimbra, 3.ed., 1996, tomo II, p.319), é relevante considerar estas palavras do Min. Celso de Mello, que foi do Supremo Tribunal Federal brasileiro:
«(…) a construção do significado de Constituição permite, na elaboração desse conceito, que sejam considerados não apenas os preceitos de índole positiva, expressamente proclamados em documento formal (que consubstancia o texto escrito da Constituição), mas, sobretudo, que sejam havidos, igualmente, por relevantes, em face de sua transcendência mesma, os valores de caráter suprapositivo, os princípios cujas raízes mergulham no direito natural e o próprio espírito que informa e dá sentido à Lei Fundamental do Estado. Não foi por outra razão que o STF, certa vez, e para além de uma perspectiva meramente reducionista, veio a proclamar – distanciando-se, então, das exigências inerentes ao positivismo jurídico – que a Constituição da República, muito mais do que o conjunto de normas e princípios nela formalmente positivados, há de ser também entendida em função do próprio espírito que a anima, afastando-se, desse modo, de uma concepção impregnada de evidente minimalismo conceitual (...)» (ADI 2.971 AgR, j. 6-11-2014).
1.141. Que é a certidão de regularização fundiária?
É um documento −ou, na visão processual do registro de imóvel− um título que confirma, no âmbito das medidas próprias da regularização fundiária urbana, a regularidade da ocupação de imóveis urbanos, de modo que se confira segurança jurídica quer a seus ocupantes, quer ao poder público, evadindo, o quanto possível, conflitos possessórios. Lê-se, a propósito, no inciso V do art. 11 da Lei 13.465, de 2017, que a certidão de regularização fundiária é um «documento expedido pelo Município ao final do procedimento da Reurb, constituído do projeto de regularização fundiária aprovado, do termo de compromisso relativo a sua execução e, no caso da legitimação fundiária e da legitimação de posse, da listagem dos ocupantes do núcleo urbano informal regularizado, da devida qualificação destes e dos direitos reais que lhes foram conferidos».
Assim, esse documento −a certidão de regularização fundiária− é expedido ao fim de um processo administrativo que tem curso em esfera municipal (cf. o inc. VIII do art. 30 da Constituição federal brasileira de 1988: «Compete aos Municípios: […] VIII - promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano»), título que, nos termos do art. 41 da Lei 13.465, deverá instruir-se do projeto aprovado «e deverá conter, no mínimo:
I - o nome do núcleo urbano regularizado;
II - a localização;
III - a modalidade da regularização;
IV - as responsabilidades das obras e serviços constantes do cronograma;
V - a indicação numérica de cada unidade regularizada, quando houver;
VI - a listagem com nomes dos ocupantes que houverem adquirido a respectiva unidade, por título de legitimação fundiária ou mediante ato único de registro, bem como o estado civil, a profissão, o número de inscrição no cadastro das pessoas físicas do Ministério da Fazenda e do registro geral da cédula de identidade e a filiação.»
Merece detida atenção dos registradores o que dispõem os arts. 42 a 44 da Lei 13.465:
«Art. 42. O registro da CRF e do projeto de regularização fundiária aprovado será requerido diretamente ao oficial do cartório de registro de imóveis da situação do imóvel e será efetivado independentemente de determinação judicial ou do Ministério Público.
Parágrafo único. Em caso de recusa do registro, o oficial do cartório do registro de imóveis expedirá nota devolutiva fundamentada, na qual indicará os motivos da recusa e formulará exigências nos termos desta Lei.
Art. 43. Na hipótese de a Reurb abranger imóveis situados em mais de uma circunscrição imobiliária, o procedimento será efetuado perante cada um dos oficiais dos cartórios de registro de imóveis.
Parágrafo único. Quando os imóveis regularizados estiverem situados na divisa das circunscrições imobiliárias, as novas matrículas das unidades imobiliárias serão de competência do oficial do cartório de registro de imóveis em cuja circunscrição estiver situada a maior porção da unidade imobiliária regularizada.
Art. 44. Recebida a CRF, cumprirá ao oficial do cartório de registro de imóveis prenotá-la, autuá-la, instaurar o procedimento registral e, no prazo de quinze dias, emitir a respectiva nota de exigência ou praticar os atos tendentes ao registro.
- 1º O registro do projeto Reurb aprovado importa em:
I - abertura de nova matrícula, quando for o caso;
II - abertura de matrículas individualizadas para os lotes e áreas públicas resultantes do projeto de regularização aprovado; e
III - registro dos direitos reais indicados na CRF junto às matrículas dos respectivos lotes, dispensada a apresentação de título individualizado.
- 2º Quando o núcleo urbano regularizado abranger mais de uma matrícula, o oficial do registro de imóveis abrirá nova matrícula para a área objeto de regularização, conforme previsto no inciso I do § 1º deste artigo, destacando a área abrangida na matrícula de origem, dispensada a apuração de remanescentes.
- 3º O registro da CRF dispensa a comprovação do pagamento de tributos ou penalidades tributárias de responsabilidade dos legitimados.
- 4º O registro da CRF aprovado independe de averbação prévia do cancelamento do cadastro de imóvel rural no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
- 5º O procedimento registral deverá ser concluído no prazo de sessenta dias, prorrogável por até igual período, mediante justificativa fundamentada do oficial do cartório de registro de imóveis.
- 6º O oficial de registro fica dispensado de providenciar a notificação dos titulares de domínio, dos confinantes e de terceiros eventualmente interessados, uma vez cumprido esse rito pelo Município, conforme o disposto no art. 31 desta Lei.
- 7º O oficial do cartório de registro de imóveis, após o registro da CRF, notificará o Incra, o Ministério do Meio Ambiente e a Secretaria da Receita Federal do Brasil para que esses órgãos cancelem, parcial ou totalmente, os respectivos registros existentes no Cadastro Ambiental Rural (CAR) e nos demais cadastros relacionados a imóvel rural, relativamente às unidades imobiliárias regularizadas.
§ 8º O oficial do cartório de registro de imóveis, ao abrir as matrículas individuais decorrentes do projeto de regularização fundiária, deverá, nas matrículas de unidades imobiliárias cujo ocupante não venha a ser informado na lista de beneficiários da CRF, fazer constar o titular originário da matrícula na condição de proprietário anterior, não inserindo esse mesmo proprietário como titular atual da matrícula aberta, mas apenas inserindo, no campo relativo ao proprietário atual, texto informando que o futuro proprietário será oportunamente citado na matrícula quando do envio de listas complementares de beneficiários.»