Registros da legitimação de posse e de sua conversão em propriedade (quarta parte)

(da série Registros sobre Registros, n. 371)

                                                     Des. Ricardo Dip

 

1.133.  Assim o temos visto ao largo destas explanações −na série «Registros sobre Registros»− acerca da legitimação de posse imobiliária, foi mercê, à origem, do regime de sesmarias que, gradativamente, chegamos à conveniência de conceder algo ao registro das possessões de imóveis. A normativa sobre as sesmarias, como veremos a seguir, perdurou até o surgimento da Lei 601, de 1850, com que, por primeiro, veio a reconhecer-se, entre nós, a legitimação de posse.

Não custa, antes de prosseguir, retomar, em brevíssimos parágrafos, o tema das sesmarias. Que foram elas, enfim?

Definem as Ordenações Filipinas, no Livro IV, ao início de seu título XLIII que tem a rubrica Das Sesmarias, que eram elas «propriamente as dadas de terras, casais, ou pardieiros, que foram, ou são de alguns Senhorios, e que já em outro tempo foram lavradas e aproveitadas, e agora o não são».

Opina-se que o vocábulo «sesmaria» provém de sesmar, partir, dividir, demarcar terras. E assim o Elucidário de Viterbo a refere: «A origem deste nome parece que se deve procurar em sesma (hoje sesmo) que era a sexta parte de qualquer cousa». No mesmo sentido, Marcelo Caetano diz ainda que sesmo deve provir do latim seximus, explicando a seguir a instituição da sesmaria em Portugal, no bojo de amplas providências agrárias.

Não falta, entretanto, quem lhe indique diversa origem (do latim cæsina, cæsinæ), rasgão feito na superfície da terra pela relha do arado ou pela enxada (veja-se, a propósito, o glossário básico português–latino de António Manual Hespanha).

Casais são casas de campo; também se chama casal o lugarejo de poucas casas, solar.

Pardieiros são casas velhas, ameaçando ruína, ou já arruinadas e desabitadas.

Dadas ou datas de terras são porções ou faixas de terra.

Nas dadas do Brasil, por se tratar de terras virgens, impropriamente falava-se em sesmarias. Como as terras brasileiras estavam desaproveitadas, a elas se estendeu o termo sesmarias.

Sustenta–se que as Ordenações Filipinas não se aplicavam sobre as sesmarias brasileiras, sendo regidas por diversas Cartas Régias (de 1682, de 1695, de 1697, de 1698, de 1699, de 1771) e Provisões de 1743. Um Alvará, em 5 de janeiro de 1785, declarou que as sesmarias do Brasil constituíam parte considerável do domínio da Coroa, e eram dadas com a condição essencialíssima de serem as terras cultivadas. Seguiram–se outras leis.

Afrânio de Carvalho leciona que investida a Coroa portuguesa do senhorio do território brasileiro, por força da descoberta (vale dizer, invenção) −título originário de posse−, as dadas de terra eram doadas, primeiro pelos donatários das capitanias, depois pelos governadores e capitães–generais, por meio de cartas de sesmaria, com que se destacavam do domínio público as terras que viriam a constituir-se domínio privado.

Essa situação estendeu–se, segundo Afrânio de Carvalho, da descoberta do Brasil até sua independência, em 1822, abrindo um hiato legislativo que persistiu até 1850 (com a Lei 601). Essa Lei 601, de 18 de setembro de 1850, decretada pela Assembleia brasileira e sancionada por Dom Pedro II, e seu regulamento, o Decreto n. 1.318, de 30 de janeiro de 1854, sem dúvida revogaram a legislação sobre as sesmarias, ao regular a venda e a posse das terras devolutas e públicas.

1.134.  Tratemos agora do direito positivo em vigor acerca da matéria da legitimação de posse imobiliária e de sua conversão em domínio.

Abdicando, por ora, de minudenciar as cabíveis discriminações, leiamos os arts. 183 e 191 da Constituição brasileira de 1988:

  • art. 183: «Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
  • 1º O título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil. 
  • 2º Esse direito não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez. 
  • 3º Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião»;
  • art. 191: «Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como seu, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra, em zona rural, não superior a cinquenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade. 

Parágrafo único. Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião».

Para logo, tem-se a vedação de que os imóveis públicos sejam suscetíveis de usucapião. Também alguns imóveis particulares podem não ser passíveis de aquisição por usucapião (veja-se, a propósito, o que diz o art. 3º da Lei 6.969, de 10-12-1981: «A usucapião especial não ocorrerá nas áreas indispensáveis à segurança nacional, nas terras habitadas por silvícolas, nem nas áreas de interesse ecológico, consideradas como tais as reservas biológicas ou florestais e os parques nacionais, estaduais ou municipais, assim declarados pelo Poder Executivo, assegurada aos atuais ocupantes a preferência para assentamento em outras regiões, pelo órgão competente»).

Que não caiba a usucapião de bens públicos, isso o repete o Código civil brasileiro de 2002 −Os bens públicos não estão sujeitos a usucapião» (art. 102)−, esclarecendo serem públicos «os bens do domínio nacional pertencentes às pessoas jurídicas de direito público interno; todos os outros são particulares, seja qual for a pessoa a que pertencerem» (art. 98), bens públicos esses que o mesmo Código divide, classicamente, em seu art. 99, serem:

«I - os de uso comum do povo, tais como rios, mares, estradas, ruas e praças; 

II - os de uso especial, tais como edifícios ou terrenos destinados a serviço ou estabelecimento da administração federal, estadual, territorial ou municipal, inclusive os de suas autarquias; 

III - os dominicais, que constituem o patrimônio das pessoas jurídicas de direito público, como objeto de direito pessoal, ou real, de cada uma dessas entidades. 

Parágrafo único. Não dispondo a lei em contrário, consideram-se dominicais os bens pertencentes às pessoas jurídicas de direito público a que se tenha dado estrutura de direito privado.»

O impedimento jurídico da usucapião de terras públicas não equivale, porém, a inibir sua aquisição por particulares, nos termos avançados pela Constituição de 1988, neste passo aclimada a constituições anteriores (de 1934, de 1937, de 1946 com o acréscimo a seu art. 156, conforme o texto da Emenda constitucional 10, de 9-11-1964: «Todo aquele que, não sendo proprietário rural nem urbano, ocupar, por dez anos ininterruptos, sem oposição nem reconhecimento de domínio alheio, trecho de terra que haja tornado produtivo por seu trabalho, e de sua família, adquirir-lhe-á a propriedade mediante sentença declaratória devidamente transcrita. A área, nunca excedente de cem hectares, deverá ser caracterizada como suficiente para assegurar ao lavrador e sua família, condições de subsistência e progresso social e econômico, nas dimensões fixadas pela lei, segundo os sistemas agrícolas regionais»).

O que nos interessa, neste capítulo, entretanto, é saber quais bens podem ser objeto da legitimação de posse.

É disso que trataremos em nossa próxima explanação desta série.