Registros da legitimação de posse e de sua conversão em propriedade (terceira parte)

(da série Registros sobre Registros, n. 370)

 Des. Ricardo Dip

 

1.130.   Dando sequência às explanações sobre os registros da legitimação de posse e de sua conversão em propriedade, nesta série «Registros sobre Registros», façamos aqui, ainda, uma breve incursão histórica quanto à elevação constitucional da legitimação possessória objeto da Lei imperial 601, de 1850, editada ao tempo da Carta constitucional de 1824.

Depois dessa normativa constitucional do Império brasileiro, anos e pouco após o golpe militar que instituiu a forma republicana de governo, adveio a Constituição de 1891, que não tratou da legitimação de posse, mas se referiu às terras devolutas −objeto dessa legitimação, nos termos da Lei 601, de 1850. Dispunha, a propósito, essa lei imperial, em seu art. 3º:

«São terras devolutas: 

  • 1º As que não se acharem aplicadas a algum uso público nacional, provincial, ou municipal. 
  • 2º As que não se acharem no domínio particular por qualquer título legitimo, nem forem havidas por sesmarias e outras concessões do Governo Geral ou Provincial, não incursas em comisso por falta do cumprimento das condições de medição, confirmação e cultura. 
  • 3º As que não se acharem dadas por sesmarias, ou outras concessões do Governo, que, apesar de incursas em comisso, forem revalidadas por esta Lei. 
  • 4º As que não se acharem ocupadas por posses, que, apesar de não se fundarem em título legal, forem legitimadas por esta Lei.»

Por sua vez, a Constituição de nossa primeira República dispôs:

«Art. 64 - Pertencem aos Estados as minas e terras devolutas situadas nos seus respectivos territórios, cabendo à União somente a porção do território que for indispensável para a defesa das fronteiras, fortificações, construções militares e estradas de ferro federais.

 Parágrafo único - Os próprios nacionais, que não forem necessários para o serviço da União, passarão ao domínio dos Estados, em cujo território estiverem situados

Acrescente-se que não se revogou a Lei 601, como se poderá extrair do que previa o art. 83 da Constituição de 1891: «Continuam em vigor, enquanto não revogadas, as leis do antigo regime no que explícita ou implicitamente não forem contrárias ao sistema do Governo firmado pela Constituição e aos princípios nela consagrados».

Voltando ao tema da constitucionalização da legitimação de posse, isso se deu, entre nós, apenas com o Código político de 1946, como se lê em seu art. 156:

  • (caput): «A lei facilitará a fixação do homem no campo, estabelecendo planos de colonização e de aproveitamento das terras pública. Para esse fim, serão preferidos os nacionais e, dentre eles, os habitantes das zonas empobrecidas e os desempregados».
  • (§ 1º): «Os Estados assegurarão aos posseiros de terras devolutas, que nelas tenham morada habitual, preferência para aquisição até vinte e cinco hectares».
  • (§ 2º): «Sem prévia autorização do Senado Federal, não se fará qualquer alienação ou concessão de terras públicas com área superior a dez mil hectares».

 

Saliente-se que essa norma constitucional tinha eficácia institutiva e nutria-se, bem se avista, dos motivos prudenciais já admitidos com a Lei 601, ou seja, o povoamento das terras rurais −«a lei facilitará a fixação do homem no campo»−, prestigiando a atividade econômica de produção nessas terras e a moradia habitual. Assim, o aspecto político a destacar nessa disposição constitucional é o do desestímulo à migração para zonas urbanas e o favorecimento do enracinement, ou seja, participação real e natural dos homens, como o disse Simone Weil, na existência de uma coletividade que preserva a herança de seu passado e a esperança de seu porvir. Sabe-se, em contrário, que a falta desse enraizamento provocou, assim apontou Juan Vallet de Goytisolo, uma excessiva mobilização do solo que deixou de ser o locus natural de habitação das famílias. Como fez ver Hedemann, o resultado do fomento à migração urbana −ou, indo a um indicativo anterior, o fomento à industrialização− foi o do endividamento, o da pulverização do solo e o do egoísmo da terra.

Peço licença para referir esta passagem de Roca Sastre −invocada por Vallet− e que traduzo livremente:

«(…) a propriedade imóvel sempre constituirá o solo nacional e será o assento da família (órgão semipúblico). Nela deverá apreciar-se um valor de afeição, de história familiar e de linhagem, e terá de ver-se, sobretudo tratando-se da propriedade rural, o aspecto da propriedade instituição, mais que o da propriedade simplesmente econômica. O afã de mobilizar o solo atende a este último aspecto (posição que só excepcionalmente, p.ex., tratando-se de habitações familiares, merece ter-se em conta), esquecendo-se o institucional. Hoje, em vista da função social da propriedade, vê-se a necessidade de arraigar no solo a família rural, de assentar no terreno de cultivo o proletariado agrícola, de combater o absenteísmo e o êxodo da mão de obra para a cidade

Para ainda melhor favorecer o cultivo, o limite para a preferência aquisitiva de terras devolutivos por posseiros que nelas tivessem morada habitual se elevou de 25 a 100 hectares por força da Emenda constitucional 10, de 9 de novembro de 1964.

1.131.   Entre nossas tão frequentes edições de normas constitucionais, o Código político de 1967 manteve, no essencial, a anterior previsão acerca do tema. Lia-se em seu art. 164:

«A lei federal disporá sobre as condições de legitimação da posse e de preferência à aquisição de até cem hectares de terras públicas por aqueles que as tornarem produtivas com o seu trabalho e de sua família.

 Parágrafo único - Salvo para execução de planos de reforma agrária, não se fará, sem prévia aprovação do Senado Federal, alienação ou concessão de terras públicas com área superior a três mil hectares.»

Embora essa disposição constitucional não se refira expressamente à moradia habitual dos posseiros, refere-se ao suposto de que se trate de possessão de terras públicas que se tenham tornando produtivas pelo trabalho individual do possuidor e também pelo de sua família. Isso realça o mesmo espírito de povoação e cultivo das terras, de par com a de enraizamento, assentamento familiar.

1.132. A Constituição brasileira de 1969 também tratou da matéria: «A lei federal disporá sobre as condições de legitimação da posse e de preferência para aquisição, até cem hectares, de terras públicas por aqueles que as tornarem produtivas com o seu trabalho e o de sua família» (caput do art. 171).

Têm razão, a propósito, Vitor Frederico Kümpel e Carla Modina Ferrari, quando, nesse texto do art. 171 da Constituição de 1969, criticam o uso da expressão «terras públicas» (note-se, todavia, que esse termo já estava na Constituição de 1967). Dizem os autores:

«Observe-se o equívoco no referido art. 171, ao se valer, genericamente, da expressão <terras públicas>, já que as terras suscetíveis de legitimação eram as devolutas, conforme já constava na Constituição de 1946 (…).»

Prosseguiremos.