Registros da legitimação de posse e de sua conversão em propriedade (segunda parte)

(da série Registros sobre Registros, n. 369)

                                                              Des. Ricardo Dip

 

 

1.129.             Dando sequência ao exame do tema dos registros da legitimação de posse e de sua conversão em propriedade, tenha-se em conta a disputada questão relativa à inscrição da posse de imóvel.

Com efeito, além do problema que, no campo do registro de posses imobiliárias, envolve a titulação correspondente, outras dificuldades avistam-se quanto às transferências possessórias e os efeitos que se hão de extrair de uma posse tabular (é dizer, têm-se o fato de um registro de posse e um status correspondente, mas o que isso implica perante o dominus registral e terceiros titulares de direitos reais menores sobre o imóvel objeto da possessão?).

Daí que, no direito brasileiro, tenha prevalecido uma prudente adoção da admissibilidade do registro de posses imobiliárias.

Comecemos por aludir ao antigo «registro do vigário» −vale dizer, o registro paroquial−, que recrutava indicações de posses. Lia-se, com efeito, nos arts. 4º e 5º da Lei 601, de 18 de setembro de 1850:

«Art. 4º Serão revalidadas as sesmarias, ou outras concessões do Governo Geral ou Provincial, que se acharem cultivadas, ou com princípios de cultura, e morada habitual do respectivo sesmeiro ou concessionário, ou do quem os represente, embora não tenha sido cumprida qualquer das outras condições, com que foram concedidas.

 Art. 5º Serão legitimadas as posses mansas e pacíficas, adquiridas por ocupação primaria, ou havidas do primeiro ocupante, que se acharem cultivadas, ou com princípio de cultura, e morada, habitual do respectivo posseiro, ou de quem o represente (…).»

Essa restrição do registro paroquial ao só fato possessório ficou assentada pela jurisprudência pretoriana. Já num julgado de 30 de agosto de 1993, tendo o Superior Tribunal de Justiça decidido ser «pressuposto essencial para a propositura da ação demarcatória que seja o autor proprietário do imóvel demarcado» (Rel. Min. Dias Trindade), isso já prenunciava que, mais adiante, fosse negar o mesmo STJ a extração de efeito dominial do só «registro do vigário», como fez ver um acórdão primoroso liderado pelo Min. Sidnei Beneti, acórdão de que se reproduzem aqui alguns excertos:

«(…) se há algo de tranquilo e pacífico na longa tradição histórica da <actio finium regundorum>, tal é a exigência de prova documental registrária de propriedade, a exigir o histórico documentado das transmissões do domínio até os promoventes, prova de propriedade que, relembre-se o óbvio, exige e sempre exigiu, sob a legislação atual assim como sob a legislação anterior, a juntada de certidões do Registro de Imóveis competente − o que nunca veio a estes autos.

(…)

O recebimento da Carta de Sesmaria jamais se equiparou, por si só, à propriedade, no Direito Brasileiro. Sempre teve reconhecimento como justo título para posse, que, se longeva, podia e pode, amparar pretensão como ao usucapião, mas nunca tendo constituído por si só título de propriedade apto à transcrição no Registro de Imóveis, como é da essência dos títulos de propriedade. Com efeito, o próprio conceito de Sesmaria pressupõe a posse e a utilização efetiva da terra, como explica ROBERTO MOREIRA DE ALMEIDA, com apoio em PINTO FERREIRA (<Curso de Direito Agrário>, S. Paulo, Saraiva, p. 107): <Sesmarias, sinteticamente, consistem nos lotes de terras abandonadas ou incultas cedidos pelos reis lusitanos a determinadas pessoas que resolvessem cultivá-las. Esses cultivadores passaram a ser conhecidos retratados por sesmeiros, ou seja, os beneficiários das sesmarias> (<Sesmarias e Terras Devolutas>, Revista de Informação Legislativa, n. 28/310, abril/junho 2003).

(…)

Não basta, pois, a titularidade de Carta de Sesmaria, que sem dúvida constitui um título, mas não de propriedade, para que automaticamente se tenha adquirido o direito de propriedade, para o qual necessário também o completamento do título com a posse e, em seguida, a transcrição no Registro de Imóveis, para que se configure, juridicamente, o domínio

Esse entendimento −e não é demasiado reafirmar a excelência do voto do Min. Beneti− também mereceu acolhida no Supremo Tribunal Federal. Assim, no RE 79.828 (Rel. Min. Néri da Silveira, j. 6-3-1989), dizendo-se que o registro paroquial «não induz propriedade», sendo mero «fato probante da posse», e ainda antes desse julgado, em dezembro de 1975, decidiu-se no mesmo STF, que «o registro da lei 601/1850 [o registro paroquial], pelo regulamento do de 1854, não tinha finalidade puramente estatística, mas visava a legalizar a situação de fato das posses que se multiplicaram nos 3 séculos anteriores» (RE 80416, Rel. Min. Cunha Peixoto).

Em um julgado de 4 de junho de 2009, o STJ, em acórdão liderado pelo Min. Luis Felipe Salomão (REsp 389.372), seguiu o mesmo entendimento. Recolhe-se da ementa desse julgado:

«(…)

  1. A origem da propriedade particular no Brasil ora advém das doações de sesmarias, ora é proveniente de ocupações primárias.

 Ambas, para se transformarem em domínio pleno, deveriam passar pelo crivo da <revalidação> ou, quanto às <posses de fato>, da <legitimação>, procedimentos previstos, respectivamente, nos arts. 4º e 5º da Lei nº 601, de 18 de setembro de 1850 (Lei de Terras). 

  1. A legitimação da posse, para caracterização do domínio pleno, cujo procedimento foi regulamentado pelo Decreto nº 1.318 de 30 Janeiro de 1854, requeria como condições, além da medição a que faz referência o art. 7º da Lei nº 601/1850, o cultivo ou princípio de cultivo da terra, a moradia habitual do respectivo posseiro, bem como as demais condições explicitadas no art. 5º, caput e parágrafos, do Diploma em análise. Assim, a controvérsia não se limita simplesmente em saber se a medição das terras (art. 7º) poderia ser dispensada na hipótese. Em realidade, para que a posse mansa e pacífica fosse legitimada, nos termos do art. 5º da Lei de Terras, também era necessário o preenchimento das demais condições a que faz referência a Lei, e cuja comprovação não pode ser realizada na instância especial, por força do que dispõe a Súmula 07/STJ. 
  1. Ademais, mostra-se desarrazoada a interpretação que relativiza, 159 (cento e cinqüenta e nove) anos depois, literal disposição da Lei de Terras (Lei nº 601 de 1850), a qual visava, expressamente, estabilizar as relações fundiárias existentes no Brasil, concedendo ao Estado a perseguida certeza jurídica em relação a terras, quer pertencentes a ele, quer pertencentes a particulares. 
  1. Não há direito de propriedade decorrente do Registro Paroquial. 

Com efeito, nos termos do art. 94 do Decreto nº 1.318, de 30 de janeiro de 1854, as declarações dos possuidores ou sesmeiros feitas ao Pároco não lhes conferiam nenhum direito. Por outro lado, sendo vedado ao possuidor ou sesmeiro hipotecar ou alienar o terreno antes de tirar título passado na respectiva Representação Provincial, infere-se que o direito de propriedade das glebas somente se aperfeiçoava com o registro do dito título, sendo irrelevante o cadastro realizado perante o Vigário Paroquial.»