(da série Registros sobre Registros, n. 367)
Des. Ricardo Dip
1.127. A Medida provisória 2.220, de 4 de setembro de 2001, por seu art. 15, alterou o inciso I do art. 167 da Lei 6.015/1973, assinando o cabimento do registro −em sentido estrito− «do contrato de concessão de direito real de uso de imóvel público» (item 40).
Como tem sido frequente, há um lapso na redação do dispositivo, porque o que se registra, no ofício imobiliário, não é o título em sentido formal (é dizer, o contrato), mas o título em sentido material (ou seja, a concessão).
Comecemos por assinalar que, em dada perspectiva, o tema da concessão de direito real de uso de imóvel público diz respeito às relações reais de caráter administrativo, ou seja, ao fenômeno de bens de um determinado domínio público estarem em relação com terceiros.
Na maior parte das hipóteses, essa relação é despida de consequências jurídicas (pense-se, por exemplo, no simples fato de alguém andar por uma praça pública). Todavia, pode ocorrer que a relação real administrativa constitua um direito subjetivo de que sejam titulares terceiras pessoas (quer particulares, quer outra entidade pública que não a proprietária da coisa).
Por outro aspecto, quando se trate de uma relação real administrativa correspondente a particulares, podem ser estes os membros todos da comunidade (assim, se dá, por exemplo, com a relação referente aos bens comuns do povo) ou algum particular que tenha uma relação privativa com a coisa de domínio público.
Essa relação diz-se real porque concerne a uma coisa, de sorte que nada impede que a relação dita real gere um direito de natureza obrigacional.
O direito real de uso de imóvel público, matéria de que ora cuidamos, é um uso privativo que pode ser concedido tanto a entidades públicas, quanto a particulares. Versaremos somente o quadro da concessão de uso privativo a particulares, porque até certo ponto pode tratar-se unitariamente desses dois usos privativos, embora sejam apenas facultados, quanto aos entes públicos, uma titulação contratual e o registro imobiliário correspondente.
Deixamos já estabelecido que a utilização de coisa pública por particulares pode ser comum (bens de uso comum, bens de uso geral, bens públicos em acepção restrita) e privativo (bens de uso excepcional). Saliente-se que essa classificação não desconhece −nem diverge− da divisão do gênero dos bens públicos em bens de uso comum, bens de uso especial e bens dominicais.
A situação de normalidade dos bens de domínio público é o de sua utilização pública (seja no modo do uso comum do povo, seja no modo do uso especial). Dessa maneira, a utilização desses bens em caráter privativo sempre exigirá um título jurídico específico (conforme os variados ordenamentos, um ato administrativo, um contrato, a própria lei) e está sujeita à condição necessária de que, com o uso privativo, não se prejudique o exercício das funções públicas. Antes da edição de um ato administrativo ou de um pacto entre a administração e o particular não há, pois, direito algum ao uso privativo do bem público.
De acordo com a disposição legal que ora examinamos, a concessão de direito real de uso de imóvel público exige um contrato administrativo. Não impõe a lei o caráter oneroso do pacto, embora muito frequente seja que a finalidade dessa concessão esteja em que obras públicas se financiem com o aporte de verbas privadas. Ensina CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO que a concessão de uso privativo de bem público não se destina a atender a interesses do povo em geral, ainda que possa, em dados casos, visar ao bem comum, p.ex., em diferentes objetivos: assim, a de regularização fundiária, a de fomentar o cultivo da terra, a urbanização, a industrialização, etc. Leia-se, a propósito, no art. 13 da Lei brasileira 9.074, de 7 de julho de 1995: «O aproveitamento de potencial hidráulico, para fins de produção independente, dar-se-á mediante contrato de concessão de uso de bem público, na forma desta Lei».
A mesma Lei 9.074 refere-se às licitações para a concessão do direito real de uso privativo de bem público (art. 31: «Nas licitações para concessão e permissão de serviços públicos ou uso de bem público, os autores ou responsáveis economicamente pelos projetos básico ou executivo podem participar, direta ou indiretamente, da licitação ou da execução de obras ou serviços»), matéria que se disciplinou na vigente Lei 14.133, de 1º de abril de 2021, lendo-se em seu art. 2º que ela se aplica à «alienação e concessão de direito real de uso de bens» (inc. I).
Prevê-se, com efeito, em seu art. 76: «A alienação de bens da Administração Pública, subordinada à existência de interesse público devidamente justificado, será precedida de avaliação (…)» (caput), impondo-se o processo licitatório pelo modo de leilão (inc. I).
Veja-se, ainda, o que dispõe o § 3º desse mesmo art. 76 da Lei 14.133:
«A Administração poderá conceder título de propriedade ou de direito real de uso de imóvel, admitida a dispensa de licitação, quando o uso destinar-se a:
I - outro órgão ou entidade da Administração Pública, qualquer que seja a localização do imóvel;
II - pessoa natural que, nos termos de lei, regulamento ou ato normativo do órgão competente, haja implementado os requisitos mínimos de cultura, de ocupação mansa e pacífica e de exploração direta sobre área rural, observado o limite de que trata o § 1º do art. 6º da Lei nº 11.952, de 25 de junho de 2009».
Com isso −e ressalvadas algumas tantas exceções (cf. o inc. I do art. 76 da referida Lei 14.133)− resguarda-se a impessoalidade da concessão.
Por fim, a exemplo do que ocorre com a constituição do direito de superfície (em que o Código civil exige por título uma escritura pública −art. 1.369; da mesma sorte, cf. art. 21 da Lei 10.257/2001), há também exigência de escritura pública para o contrato de concessão do direito real de uso de imóvel público «Contratos relativos a direitos reais sobre imóveis serão formalizados por escritura pública lavrada em notas de tabelião, cujo teor deverá ser divulgado e mantido à disposição do público em sítio eletrônico oficial» (§ 2º do art. 91 da Lei 14.133, de 2021).