A mania egípcia de escrever −tal a referiu Vigouroux−, essa mania de documentar, registrar, inventariar −o povo egípcio, disse Bezold, era um «povo grafômono»−, parece ter dado causa à aparição da escrita demótica (a escrita popular), simplificação da escrita hierática −que, por sua vez, já simplificava a escrita hieroglífica (que imitava entes naturais e artefatos).
Essa escrita popular, a despeito da preservação do uso dos hieróglifos na transcrição de textos religiosos e nos monumentos, adotou-se na vida jurídica do antigo Egito, uma vida jurídica, saliente-se, que tinha em seu entorno uma complexa organização político-administrativa (cf. Salvatore Pugliatti, La trascrizione, ed. Dott. Giuffrè, Milão, 1957, vol. I, tomo I, p. 62). Averbe-se que, assim o fez Karl Loewenstein, o Egito dos faraós −com sua planificação estatal− era uma sociedade «essencialmente totalitária», mas em que o mecanismo de coação se havia integrado aos usos e costumes sociais (Teoría de la constitución, ed. Ariel, Barcelona, 1964, p. 79). Isso permite compreender o trânsito entre a inclinação ao documento e a organização do estado.
Essa organização, prossegue Pugliatti, supõe exatamente o documento, que, como se tem dito, possui, entre os antigos egípcios, um grande valor jurídico: ali se professa o princípio de que não exista o que não possa documentar-se. Toda a antiga administração egípcia, pois, tem como fulcro o documento; administrar e documentar são ações que parecem confundir-se no Egito do antigo império (o.c., p. 64).
Deve-se a João Mendes de Almeida Júnior uma das mais interessantes −senão mesmo a mais interessante das relações históricas que se fizeram, entre nós, acerca das notas e dos registros públicos. Mencionou ele, quanto às práticas do antigo Egito, que, num momento mais remoto, os contratos de transmissão de propriedade possuíam três etapas:
- primeira, a do acordo sobre a coisa objeto da alienação e acerca do fato do pagamento do preço correspondente (sem, entretanto, indicar-lhe a quantidade);
- segunda, a do juramento religioso, expedindo-se um auto a seu respeito;
- terceira, a da imissão na posse da coisa transferida, imissão que se efetuava perante o juiz, e a que se seguia o lançamento do nome do adquirente no livro de cadastro, livro esse, disse João Mendes, «em que eram alistados os imóveis, descrevendo-se a sua extensão, qualidade, característicos, valor ou preço e nomes dos proprietários» (Órgãos da fé pública, ed. Saraiva, 2.ed., São Paulo, 1963, p. 13).
Mais tarde, com um movimento de secularização jurídica, desapareceu o ato intermédio de juramento, que tinha caráter religioso, e passou também a indicar-se a cifra ou quantia do preço aquisitivo.
Sob a posterior influência do helenismo, os contratos entre os egípcios passaram a celebrar-se «perante os notários gregos» (João Mendes, o.l.c.), aos quais os egípcios se dirigiam voluntariamente, iniciando-se um processo de agregação testemunhal aos documentos. Assim, contratos de transmissão dominial exigiam 16 testemunhas, permanecendo, até 154 a.C., a prática do cadastramento (ou registro) dos títulos.
Em palavras ainda de João Mendes, «na praxe egípcia (…) se encontram a escritura, o cadastro, o registro e o imposto de transmissão ou sisa, em sua origem histórica. Encontra-se ainda o arquivo ou cartório, porque não bastava que os contratos fossem registrados; a lei exigia ainda que fossem transcritos no cartório do tribunal ou juízo e que fossem depositados no cartório do conservador dos contratos; era o uso de todos os países onde penetrara a civilização helênica" (o.c., p. 14).