Registro de desapropriação (vigésima-primeira parte)

(da série Registros sobre Registros, n. 353)

Des. Ricardo Dip

1.104. Para concluir o capítulo sobre o registro da desapropriação imobiliária, trataremos aqui da relevância da publicidade registral para os fins de plena realização do processo expropriatório de imóveis.

Lê-se no caput do art. 34 do Decreto-lei 3.365, de 1941: "O levantamento do preço será deferido mediante prova de propriedade, de quitação de dívidas fiscais que recaiam sobre o bem expropriado, e publicação de editais, com o prazo de 10 dias, para conhecimento de terceiros". E em seu par. único: "Se o juiz verificar que há dúvida fundada sobre o domínio, o preço ficará em depósito, ressalvada aos interessados a ação própria para disputá-lo".

Pois bem: estamos a tratar somente da desapropriação de bem imóvel, desapropriação que a lei permite, nos termos do que dispõem a Constituição federal brasileira (já o vimos: inc. IV do art. 5º), o mencionado Decreto-lei 3.365/1941 e ainda o Código civil de 2002, em seu art. 1.128: "§ 3º- O proprietário pode ser privado da coisa, nos casos de desapropriação, por necessidade ou utilidade pública ou interesse social, bem como no de requisição, em caso de perigo público iminente. § 4º- O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicado consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante". Nessas hipóteses, prossegue o Código civil, "o juiz fixará a justa indenização devida ao proprietário", e, pago o preço, "valerá a sentença como título para o registro do imóvel (…)".

Embora possa admitir-se o caráter apenas declarativo do registro da desapropriação no ofício de imóveis, não pode perder-se de vista o que dispõe o § 1º do art. 1.245 de nosso vigente Código civil: "Enquanto não se registrar o título translativo, o alienante continua a ser havido como dono do imóvel", preceito reiterado, de algum modo, pelo § 2º do mesmo art. 1.245: "Enquanto não se promover, por meio de ação própria, a decretação de invalidade do registro, e o respectivo cancelamento, o adquirente continua a ser havido como dono do imóvel". No mesmo sentido, veja-se a incisiva previsão do art. 252 da Lei 6.015, de 1973: "O registro, enquanto não cancelado, produz todos os efeitos legais ainda que, por outra maneira, se prove que o título está desfeito, anulado, extinto ou rescindido". Tenha-se ainda em conta o que enuncia o art. 172 da mesma Lei 6.015: "No Registro de Imóveis serão feitos, nos termos desta Lei, o registro e a averbação dos títulos ou atos constitutivos, declaratórios, translativos e extintivos de direitos reais sobre imóveis reconhecidos em lei, 'inter vivos' ou 'mortis causa', quer para sua constituição, transferência e extinção, quer para sua validade em relação a terceiros, quer para a sua disponibilidade".   

Não se nega a possibilidade de alterar-se o teor do registro para que nele se espelhe a realidade das coisas: "Se o teor do registro não exprimir a verdade, poderá o interessado reclamar que se retifique ou anule" (art. 1.247 do Cód.civ.). Não menos se recusa que, uma vez cancelado o registro, possa então "o proprietário reivindicar o imóvel, independentemente da boa-fé ou do título do terceiro adquirente" (par. único do art. 1.247). Mas não menos certo é que se tenha o registro por "eficaz desde o momento em que se apresentar o título ao oficial do registro, e este o prenotar no protocolo".

Bem se vê a importância da publicidade do registro imobiliário para, evitando a probatio diabolica, discriminar, quanto aos imóveis, o que é de um e o que é de outro (essa distinção, cujo meio, nesse quadro, é o registro, constitui a mais elevada das funções sociais da propriedade; pode mesmo dizer, sua função social por antonomásia).

Não falta ao âmbito da desapropriação essa tarefa relevante que justifica a própria existência do registro de imóveis. Assim, a Lei geral da desapropriação estabelece que, havendo concordância entre o expropriante e o expropriando, tanto que aceita a oferta e realizado o pagamento "será lavrado acordo, o qual será título hábil para a transcrição no registro de imóveis" (§ 2º do art. 10-A); diz ainda a mesma normativa: "A imissão provisória na posse será registrada no registro de imóveis competente" (§ 4º do art. 15); por fim, no art. 29: "Efetuado o pagamento ou a consignação, expedir-se-á, em favor do expropriante, mandado de imissão de posse, valendo a sentença como título hábil para a transcrição no registro de imóveis".   

Parece, contudo, que é com a norma do art. 34 do Decreto-lei 3.365 que se encontrará a mais importante das atuações do registro na efetividade da desapropriação. Se, no plano do processo judicial, os efeitos principais da sentença são o de assinar-se o valor da indenização e o de adjudicar ao expropriante o bem objeto da desapropriação ("valendo a sentença como título hábil para a transcrição no registro de imóveis"), calha que o pagamento do preço é o ato de maior interesse para o expropriado. Mas, para receber esse preço, o expropriado terá de juntar aos autos do processo judicial "prova de propriedade" (art. 34). Ou seja, em palavras de Eurico Sodré:  "(…) títulos de propriedade escorreitos de dúvidas e devidamente transcritos" (A desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ed. Saraiva & Acadêmica, 2.ed., São Paulo, 1945, p. 255). Em palavras de Moraes Salles: "Tratando-se de bem imóvel, a propriedade se prova mediante certidão expedida pelo Registro de Imóveis, pela qual se demonstre haver sido feito o registro do título aquisitivo em nome do expropriado" (A desapropriação à luz da doutrina e da jurisprudência, ed. Revista dos Tribunais, 5.ed., São Paulo, 2006, p. 709).

É a certidão (atualizada) da matrícula −ou, quando o caso, da transcrição (suposto não haja matrícula do imóvel expropriado)− que prova, com efeito iuris tantum qualificado (rectius: efeito de legitimação registral, art. 252 da Lei 6015), a propriedade do bem imóvel.

Essa presunção qualificada, mas relativa, não impede, como não o impede nenhuma presunção relativa, alguma sorte de dúvida ou de impugnação. Mas é a prova, ordinariamente, bastante.

Se, entretanto, o juiz verificar, em dado caso, "que há dúvida fundada sobre o domínio, o preço ficará em depósito, ressalvada aos interessados a ação própria para disputá-lo" (par. único do art. 34 do Decreto-lei 3.365), dando-se o depósito −ou consignação judicial− do preço da desapropriação.

E, isso posto, concluímos o capítulo sobre o registro da desapropriação imobiliária nesta série "Registros sobre Registros".

Já na próxima, Deus mediante, cuidaremos do tema do registro da alienação fiduciária em garantia de coisa imóvel, matéria que, indicada na Lei 6.015 (no item 35 do inc. I de seu art. 167), foi recentemente objeto de uma nova lei, a 14.711, de 30 de outubro de 2023.