Tratemos agora do conceito de «gratuidade», que é um termo análogo.
O vernáculo «gratuidade» provém, de maneira mais próxima, de um adjetivo da língua latina: gratuitus, gratuita, gratuitum. E, remotamente, deriva, segundo os linguistas, do indoeuropeu, tendo à origem o sentido de algo que «atrai», que «agrada», que «acolhe bem», «acolhe com favor ou reconhecimento». Na mesma língua latina, é lição dos autorizados Alfred ERNOUT e Antoine MEILLET (Dictionnaire étymologique de la langue latine -Histoite des mots, ed. Klincksieck, Paris, 2001, p. 282), que, entre outras acepções, o vocábulo gratuitus tem a de ser o oposto de mercennārius.
Em sentido absoluto, a «gratuidade» consiste na summa benevolentia, no donum gratis datum, vale dizer, num dom ou doado −isto é seu elemento material− que se qualifica pela ausência de um título de débito −quer estrito, quer menos rigoroso− em benefício do accipiens. Veja-se, a propósito, esta passagem do Apóstolo das Gentes, S. Paulo, na Epístola aos Romanos: "E se é por graça, já não é por obras; de outra maneira, a graça deixaria de ser graça" (na Vulgata: Si autem gratia, iam non ex operibus; alioquin gratia iam non est gratia −11,6). Esta é a acepção absoluta e objetiva de «grauidade», porque seu beneficiário (o accipiens) não pode exigir jurídica nem moralmente a prestação do gratuito, a doação do dom, de maneira que sequer se pode falar em solvens (devedor), porque não há débito. O que há o Summus benignus que age com superlativa benignitas, em que, portanto, o Benignus realiza a begnititatem sem que haja reciprocidade alguma do accipiens (até mesmo a piedade do reconhecimento de ter recebido um benefício).
Há, porém, outras acepções de «gratuidade» que participam, em maior ou menor gradação, deste conceito primeiro e absoluto de donum gratia datum. Por exemplo, pense-se na «gratuidade» a que se referem, compartilhando-a, a retórica e a lógica,; fala-se nelas da «gratuidade» como proposição não fundamentada, não demonstrada; lembremo-nos do adágio quod gratis affirmatur, etiam gratias negatur (o que se afirma gratuitamente, nega-se também gratuitamente – cf., por todos, André LALANDE, Vocabulaire technique et critique de la philosophie, ed. PUF, Paris, 1947, p. 377).
Entre outros sentidos analógicos de «gratuidade», interessa-nos aqui as correspondentes ao campo do direito e da economia. No plano jurídico, a «gratuidade» é um conceito de relação oposta ao de «onerosidade»; assim, com alguma simplificação, pode afirmar-se gratuita a categoria jurídica −um negócio, uma obrigação− de que não resulta perda patrimonial para o beneficiário (são gratuitos, p.ex., a doação e o comodato).
No âmbito econômico, deve considerar-se, de pronto, que, em todos os processos −quaisquer sejam eles, na ordem do ser, do conhecer, do agir e do fazer−, vigora um princípio fundamental que é o da economia de esforços, de tempo e de custos; digamos isto de outro modo: a gratuidade é a ausência de sacrifícios quanto ao dispêndio pessoal, temporal e patrimonial.
Desta maneira, pode compreender-se por que a utopia de um mundo sem custos −ou seja, um mundo de gratuidades− corresponda à busca do paraíso perdido, uma vez que a gratuidade, no aspecto econômico, não poderá ser propriamente o donum gratia datum, sem recuperar o status do paraíso que a humanidade perdeu e recobrar a Summa benevolentia que restitua aos homens a natura condita de Adão. Em outros termos, enquanto a produção não for gratuita, a gratuidade será faticamente possível apenas quanto à oferta e ao consumo, ou seja, será sempre uma gratuidade relativa, um sacrifício eletivo, selecionado, restringido, mas sempre um sacrifício.
Cabe aqui referir, a título exemplificativo, um efeito particular paradoxal resultante, na Idade média, da subordinação da economia de alguns mosteiros ao «primado do gasto» −ou seja, uma economia em que a produção monacal se destinava não ao intuito de lucro, mas à doação do produzido−, dando-se o fato (não intencionado) de uma inesperada «rentabilidade do gratuito»: é que os mosteiros se converteram em centros de abastecimento, de comércio, de cultivo e de repovoamento (confira-se, a propósito, André PIETTRE, Las tres edades de la economía, trad. castelhana, ed. Rialp, Madri, 1962, p. 182 et sqq.).