(da série Registros sobre Registros, n. 339)
Des. Ricardo Dip
1.086. Entre os tipos de aquisição dominial referíveis ao estatuto da propriedade pública destacamos, ao final da explanação anterior, os derivados de títulos gratuitos, quais sejam o legado, as heranças testamentária e vacante, a doação, destacando ainda −por não serem propriamente derivados− os títulos aquisitivos da usucapião, da ocupação (este relativa apenas coisas móveis) e as aquisições forçadas por via judicial (adjudicação e confisco), a estas podendo ainda acrescentar-se a arrematação.
A este rol ficou faltando uma hipótese de título aquisitivo que, em rigor, porém, enquanto se considere na perspectiva de tipo de aquisição, é uma hipótese redutível, consoante a variedade dos ordenamentos locais, ou à usucapião ou à sujeição com ou sem um justo valor indenizatório.
Trata-se aí da afetação, que consiste em atribuir caráter de uso público (especial ou comum do povo) a um dado bem; nada impede que se trate de uma coisa já pública, a que se afete −é dizer, a que se destine− um de dois possíveis fins específicos (assim, um bem público dominial pode receber a destinação de uso especial: uma casa, v.g., integrante já do patrimônio público a que se afete um uso especial de secretaria, ou de escola, ou de hospital público); tampouco se inibe que uma coisa de uso especial −já afetada, portanto− se reafete, para uso comum do povo; ou que uma coisa de uso comum do povo se reafete para uso especial.
Pode ocorrer, contudo, que a afetação não proceda de lei ou de ato administrativo, mas −e isto não é raro− que ela provenha de um fato, de um empossamento ilícito pelo poder público. Acontecerá, então, e é o caso do direito brasileiro, a possibilidade de postular indenização por esta investidura ilícita na posse do bem, que, no entanto, não poderá ser reivindicado. Trata-se de uma hipótese de sujeição do interesse privado ao interesse público.
Não se pense, porém, que a vedação de demanda reivindicatória seja uma categoria historicamente restrita à sujeição de bens ao estado. Assim, a reivindicatio de bens particulares estava proibida em dadas hipóteses, como fez ver Paulo Merêa em seu estudo "Os limites da reivindicação mobiliária no direito medieval", firmando-se a regra mobilia non habent sequelam, que poderíamos agora verter para a situação peculiar brasileira: res publicæ non habent sequelam.
Distingamos: os bens do estado podem ser de domínio público (stricto sensu) e de domínio privado (são os bens dominicais −inc. III do art. 99 do Código civil nacional). Aqueles são bens indisponíveis do patrimônio público. Daí que sejam os bens de domínio público estrito −é dizer, os bens de uso comum do povo e os bens de uso especial (vejam-se os incs. I e II do mesmo art. 99)− inalienáveis, e, bem por isto, imprescritíveis, impenhoráveis, insuscetíveis de oneração, só se tornando disponíveis na hipótese de sua desafetação, ou seja, quando se trasladam, por fato ou ato do poder público, da condição de bens de domínio público stricto sensu à de bens dominicais.
Disso deriva, no direito brasileiro, a impossibilidade de reivindicar coisa expropriada ou mesmo só apossada pelo estado. Neste sentido, lê-se, entre nós, na lei geral de desapropriação −Decreto-lei 3.365/1941 (de 21-6)− o que enuncia seu art. 35: "Os bens expropriados, uma vez incorporados à Fazenda Pública, não podem ser objeto de reivindicação, ainda que fundada em nulidade do processo de desapropriação. Qualquer ação, julgada procedente, resolver-se-á em perdas e danos"; e ainda, quanto ao que se possa contestar na demanda judicial expropriatória, dispõe o art. 20 do referido Decreto-lei 3.365: "A contestação só poderá versar sobre vício do processo judicial ou impugnação do preço; qualquer outra questão deverá ser decidida por ação direta".
De consonância com norma constitucional, a do item XXIV do art. 5º do Código político brasileiro de 1988, "a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição", e esta ressalva de casos diz respeito: (i) ao previsto no inc. III do § 4º do art. 82 da Constituição: "É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de: I - parcelamento ou edificação compulsórios; II - imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo; III - desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais" (veja-se o que indica o art. 8º da Lei 10.1257, de 10-7-2001: "Decorridos cinco anos de cobrança do IPTU progressivo sem que o proprietário tenha cumprido a obrigação de parcelamento, edificação ou utilização, o Município poderá proceder à desapropriação do imóvel, com pagamento em títulos da dívida pública"); (ii) ao que prevê o caput do art. 184 da mesma Constituição: "Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei"; (iii) ao enunciado do art. 185 do mesmo Código político de 1988: "São insuscetíveis de desapropriação para fins de reforma agrária: I - a pequena e média propriedade rural, assim definida em lei, desde que seu proprietário não possua outra; II - a propriedade produtiva".
Assim, nos termos da vigente norma constitucional brasileira, pode conceituar-se «desapropriação» (ou ainda «expropriação») a transferência compulsória de bens em favor do poder público −mas também pode sê-lo em prol de autarquias ou de entidades nas quais se delegue o poder de desapropriação−, mediante, em princípio, justa indenização em dinheiro.
Tem-se ainda, antes de dar o próximo passo, com o exame da questão do processo expropriatório, de averbar uma concisa referência a isto que dispõe o art. 243 da Constituição brasileira: " As propriedades rurais e urbanas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a exploração de trabalho escravo na forma da lei serão expropriadas e destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei, observado, no que couber, o disposto no art. 5º" (esta é a redação resultante da Emenda constitucional 81, de 2014). Lê-se no parágrafo único desse mesmo art. 243: "Todo e qualquer bem de valor econômico apreendido em decorrência do tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e da exploração de trabalho escravo será confiscado e reverterá a fundo especial com destinação específica, na forma da lei".
Embora o caput desse art. 243 se refira a propriedades «expropriadas» e remeta ao art. 5º da mesma Constituição federal, a hipótese em exame é, em rigor, de confisco e não de desapropriação, como faz ver José Carlos de Moraes Salles, em seu livro A desapropriação à luz da doutrina e da jurisprudência (ed. Revista dos Tribunais, 5.ed., S.Paulo, 2006, p. 87).
Como quer que seja, haverá um título para a transferência compulsória objeto deste art. 243 do Código político nacional, e esse título é de origem judicial, conforme se verifica da Lei 8.257, de 26 de novembro de 1991.