(da série Registros sobre Registros, n. 338)
Des. Ricardo Dip
1.085. Depois do breve trânsito a que nos dedicamos −resumindo a trajetória da presúria medieval na Hispânia e de seus consequentes no plano dos domínios público e privado relativo a imóveis, incluso nas terras descobertas por Espanha e Portugal−, parece já aplainado, pela perspectiva histórica, o terreno inicial do estatuto da dominialidade predial no Brasil, é dizer, o estatuto da propriedade imobiliária, sobretudo em seu aspecto aquisitivo.
Ultrapassado este preâmbulo histórico, podemos agora versar o tema da desapropriação imobiliária, cujo registro é a matéria central de nosso interesse neste pequeno estudo.
O vernáculo «desapropriação» deriva do adjetivo latino de segunda classe proprius, propria, proprium, com a prefixação «de» que, entre suas várias acepções, possui as de «separação» e «contrariedade». Assim, «desapropriação» é a «separação do próprio» ou a «contrariedade ao próprio», vale dizer: o «oposto da apropriação». Símile quadro é o que se vê quanto à palavra «expropriação». Assinalável é que o vigente Código civil nacional indica a desapropriação como causa de perdimento da propriedade (inc. V do art. 1.275).
Se, porém, o significado etimológico desses dois vocábulos −«desapropriação» e «expropriação»− traduz a ideia de «perda da propriedade», isto não exclui o sentido adicional de que essa perda, não sempre, mas com frequência, indique, por distinto aspecto, a aquisição concomitante do domínio.
Pode ocorrer, é verdade, que a desapropriação, tomado o termo com o sentido de «perda da propriedade» não se acompanhe de conexa aquisição dominial. Pense-se, por exemplo, considerando-se o atual direito posto brasileiro, em algumas tantas hipóteses: (i) a da herança vaga, em que, por cinco anos após a declaração da vacância os bens objeto não têm proprietário (cf. art. 1.822 do Código civil brasileiro em vigor; (ii) a das res derelictæ (inc. III do art. 1.275 do mesmo Código); (iii) a da renúncia meramente abdicativa (inc. II desse art. 1.275); (iv) a do perdimento da coisa (inc. IV ainda do referido art. 1.275).
Entre as várias categorias com que pode dividir-se a aquisição de propriedade pública, indicam-se aqui, sem pretensão de exauri-las, as (i) de atribuição legal −a constitucional, inclusive (p.ex., o art. 26 da Constituição nacional brasileira de 1988 diz incluírem-se "entre os bens dos Estados: I - as águas superficiais ou subterrâneas, fluentes, emergentes e em depósito, ressalvadas, neste caso, na forma da lei, as decorrentes de obras da União; II - as áreas, nas ilhas oceânicas e costeiras, que estiverem no seu domínio, excluídas aquelas sob domínio da União, Municípios ou terceiros; III - as ilhas fluviais e lacustres não pertencentes à União; IV - as terras devolutas não compreendidas entre as da União"; o par. único do art. 39 do Código civil, versando a sucessão definitiva dos bens do ausente, enuncia: "Se, nos dez anos a que se refere este artigo, o ausente não regressar, e nenhum interessado promover a sucessão definitiva, os bens arrecadados passarão ao domínio do Município ou do Distrito Federal, se localizados nas respectivas circunscrições, incorporando-se ao domínio da União, quando situados em território federal"); (ii) de aquisição a título oneroso e voluntário, mediante contratos administrativos ou de direito privado, típicos ou atípicos; (iii) de aquisição a título gratuito, por legado, por herança testamentária, por herança vacante (como já ficou dito) e por doação; (iv) de aquisição por usucapião; (v) de aquisição, quanto a coisas móveis, por ocupação; (vi) de aquisição forçada, por via judicial (adjudicação, confisco −cf. art. 91 do Código penal brasileiro, que indica entre os efeitos genéricos da condenação na esfera da jurisdição criminal: "II - a perda em favor da União, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé: a) dos instrumentos do crime, desde que consistam em coisas cujo fabrico, alienação, uso, porte ou detenção constitua fato ilícito; b) do produto do crime ou de qualquer bem ou valor que constitua proveito auferido pelo agente com a prática do fato criminoso"; e ainda no art. 91-A do mesmo Código penal: "Na hipótese de condenação por infrações às quais a lei comine pena máxima superior a 6 (seis) anos de reclusão, poderá ser decretada a perda, como produto ou proveito do crime, dos bens correspondentes à diferença entre o valor do patrimônio do condenado e aquele que seja compatível com o seu rendimento lícito. § 1º Para efeito da perda prevista no caput deste artigo, entende-se por patrimônio do condenado todos os bens: I - de sua titularidade, ou em relação aos quais ele tenha o domínio e o benefício direto ou indireto, na data da infração penal ou recebidos posteriormente; e II - transferidos a terceiros a título gratuito ou mediante contraprestação irrisória, a partir do início da atividade criminal"; −diversamente da primeira mencionada hipótese de confisco de bens, a do art. 91 do Código penal brasileiro, que é um efeito propriamente dito da sentença condenatória, já a segunda referida, a do art. 91-A, embora receba o nome de efeito específico da sentença, constitui uma pena acessória, porque diz lei que esse perda de bens "deverá ser requerida expressamente pelo Ministério Público, por ocasião do oferecimento da denúncia, com indicação da diferença apurada" (§ 3º); lê-se ainda no § 5º do mesmo art. 91-A do Código penal: "Os instrumentos utilizados para a prática de crimes por organizações criminosas e milícias deverão ser declarados perdidos em favor da União ou do Estado, dependendo da Justiça onde tramita a ação penal, ainda que não ponham em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem pública, nem ofereçam sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos crimes").
Abra-se aqui um parêntese, para excursionar um pouco pelas «brumas do tempo". O tema do confisco não é estranho às raízes de nosso direito, registrando-o a história medieval do direito português. Lembremo-nos aqui de dois episódios gráficos de confisco, um que atingiu o alfaiate Fernão Vásques −o líder da sublevação popular contra o casamento do Rei Dom Fernando I com Dona Leonor Teles de Menezes; esse confisco, que levou à miséria a família de Fernão Vásques −também condenado à morte na ocasião−, contribuiu para a nenhuma estima que Dona Leonor Teles tinha junto ao povo português... a revolução de 1383 bem o testemunhará.
Outro confisco célebre foi o impulsionado pelo Rei português Dom João II, "O Príncipe Perfeito", contra Dom Fernando, Duque de Bragança. Abdicando de considerar a justeza ou não da sentença proferida contra Dom Fernando −sentença que lhe impôs a pena de morte, confiscando-se todos os bens da Casa de Bragança−, cabe observar que essa Casa ducal foi restaurada pelo sucessor de Dom João II, seu primo o Rei Dom Manuel I, o Venturoso. Pois bem, 80 anos mais tarde, a Duquesa de Bragança, Dona Catarina, tinha boa titulação para ser aclamada a Rainha de Portugal −era ela neta de Dom Manuel I por linha varonil (filha do Infante Dom Duarte)−, titulação que poderia concorrer com a de seu primo, o grande Imperador Dom Felipe II da Espanha, que era também neto de Dom Manuel I, mas neto por linha feminil. Mas, enfim, como se sabe, predominaram a força e a riqueza de Dom Felipe II, de resto, discussão sobre a ilegitimidade de origem à parte, foi um ótimo governante para Portugal. Passados mais 60 anos, em 1640, a restauração da independência portuguesa deu-se sob a liderança de um herdeiro da Dinastia de Bragança, Dom João IV.
Mas isto é a história. Voltaremos na próxima explanação ao foco de nosso principal interesse: a desapropriação.