Sobre a ciência notarial e a ciência registral (parte 10)

Des. Ricardo Dip

 

Passemos agora visitar, de modo mais pontual quanto ao que se perfilhou no Brasil, o que, analogicamente, designou-se como «vigas» dos sistemas formais das notas e dos registros públicos. Em outros termos, trata-se dos princípios notariais e registrais próximos que deram a configuração −é dizer, a forma acidental− que os institutos das notas e dos registros públicos adotaram, ao largo de sua trajetória histórica, para singularizem-se por partícipes da família do «notariado latino».

Iniciemos pelas vigas das notas latinas, vale dizer, pelos princípios que mais proximamente se elaboraram para singularização da atividade dos tabeliães de notas dessa família latina.

Três são as principais famílias do notariado: a latina, de que trataremos aqui; a anglo-saxã e a administrativista (ou socialista). Em todas elas −e é por isto que se prefere falar em «famílias» e não em tipos− há matizes a considerar. Rodríguez Adrados observou, a propósito, em palestra proferida no VII Congresso Internacional do Notariado Latino: "Dentro del Notariado de tipo latino que la Unión agrupa existen, ya que no tales diferencias cualitativas, sí diversidades cuantitativas que es preciso poner de relieve…". Essa diversidade pode ser, e muitas vezes o é, de pequeno porte, pouco ou nada afligindo a substância da instituição notarial, mas pode, em dados casos, ser de tal relevo que se chegue a reconhecer uma deslatinização do notariado, ou seja, o perdimento das características históricas que dão fisionomia ao paradigma notarial latino. Por exemplo, uma intensa fuga privatística −para atender a dados reclamos transitórios do mercado− ou, ao revés, uma submissão a práticas de interesse primacial administrativo são sintomas de grave perda não só do fenótipo da latinidade notarial, senão que também de seu genótipo. Na mesma linha, muito agudamente, cabe reconhecer símile resultado de desconstrução gerado pela regência tecnocrática na prática notarial.  Disto vem que seja agora, talvez mais que outros tempos, muito recomendável a análise dos princípios do notariado latino.

Comecemos pelo começo, pelo começo do processo notarial, ou seja, pela rogação ou instância da atividade do tabelião de notas.

A legitimação rogatória da atividade do notariado latino apresenta algo que não se encontra nas outras classes da função extrajudicial, sequer na atividade do tabelião especial de protesto de letras e títulos. Trata-se aqui da liberdade de escolha do tabelião das notas. O processo perante esse tabelião tem início, como ficou dito, com a instância ou rogação do cliente, solicitação que, supõe-se, vem justificada pela confiança depositada no tabelião escolhido.

Desta maneira, o cliente atua com liberdade de eleição, (i) para julgar se almeja a atividade notarial quanto a um dado negócio, (ii) para escolher o tabelião a quem incumbirá a atuação, iii) para persistir ou desistir, no todo ou em parte, dessa atuação, enquanto não se tenha expedido a autorização do ato notarial. Lê-se em regra do direito brasileiro vigente: "É livre a escolha do tabelião de notas, qualquer que seja o domicílio das partes ou o lugar de situação dos bens objeto do ato ou negócio" (art. 8º da Lei 8.935, de 18-11-1994).

Essa relação cliente-notário é assimétrica, e isto por três modos.

Primeiro: o cliente pode escolher com liberdade o tabelião de notas a quem solicita a atividade profissional, mas esse tabelião não pode recusar a rogação do cliente, de maneira que tem o dever de atendê-lo, ressalvadas as situações impeditivas (tanto as permanentes, p.ex., o previsto no art. 27 da Lei brasileira 8.935/1994, de praticar pessoalmente "qualquer ato de seu interesse, ou de interesse de seu cônjuge ou de parentes, na linha reta, ou na colateral, consanguíneos ou afins, até o terceiro grau"; quanto as transitórias: estar o tabelião afastado do exercício notarial, por motivos como os de fruição de férias, de tratamento de saúde, de suspensão, etc.).

Segundo modo da assimetria: a da diversidade fiduciária. O tabelião é escolhido em vista da confiança que inspira ao cliente, mas o mesmo tabelião não necessita, positivamente, possuir semelhante confiança no cliente. Isto não exclui, no entanto, possa o tabelião ter fundadas razões de desconfiança, caso em que poderá dar-se a recusa. Entre os estados opostos de confiança e desconfiança, há um status intermediário de suspensão de assentimento: se o tabelião não tem motivos para, fundadamente, negar uma rogação, está obrigado a aceitá-la; se, entretanto, desde o início ou no curso do processo notarial, tiver o tabelião suficientes e graves motivos para reconhecer falta de confiança no cliente, pode, então, recusar-se a atuar.

Terceiro modo dessa assimetria: suposta sempre a licitude do negócio a cuja conclusão se dirige a instância do cliente, o notário obriga-se a completar sua atuação ainda contra sua própria vontade pessoal. Esta é uma questão de complexa correspondência assimétrica entre a autonomia da vontade do cliente e a função do cavere notarial: cabe ao notário aconselhar, advertir, avisar dos perigos de um negócio, mas não lhe compete decidir pelo cliente, substituir-lhe a vontade, sempre suposta −repita-se− a licitude do negócio de que se trate.