Registro de compra e venda (décima-quarta parte)

(da série Registros sobre Registros, n. 312)

Des. Ricardo Dip

1.035. Três temas ainda nos afastam do término deste largo capítulo acerca do registro da compra e venda imobiliária, ou, para sermos mais exatos, acerca da diversidade do título material −o negócio jurídico da compra e venda− que autoriza esse registro. Falta-nos aqui o exame da venda facultativa, da venda com reserva de domínio e da venda com opção de preferência, temas todos que interessam ao registrador por incluídos no plexo da qualificação registral.

A venda facultativa é uma das espécies do gênero «obrigação facultativa», que pode conceituar-se aquela em que o devedor tem a faculdade de substituir uma prestação −que se diz principal− por outra, que pode designar-se acessória ou, talvez melhor, substituinte (na doutrina alemã: «faculdade de substituição»). 

Embora a obrigação facultativa também se denomine «obrigação com faculdade alternativa», ela −e este parece o ponto mais saliente a referir neste passo−   diferencia-se da obrigação alternativa, como adiante melhor se dirá. 

Saliente, contudo, é a crítica que pode dirigir-se ao próprio nome «obrigações facultativas», porque, como fez ver Raymundo Salvat, poderia ter-se uma primeira impressão no sentido de que ao devedor caberia escolher entre cumprir ou não cumprir a obrigação; mas uma obrigação que não se tenha de cumprir não é obrigação. Baudry-Lacantinerie e Barde propuseram outro nome para a obrigação facultativa −qual seja, "obrigação compreendendo uma prestação facultativa, ao lado da prestação obrigada"−, mas essa denominação, ainda que corresponda à realidade das obrigações facultativas, peca, à evidência, por ser demasiadamente longa. O fato, destaque-se, é que o facultativo nessas obrigações diz apenas com a substituição da prestação principal pela acessória, porque, de resto, "el cumplimiento de la obligación es tan exigible (…) como en cualquier otra clase de obligaciones" (Salvat, Tratado de derecho civil argentino -Obligaciones en general, 1923, p. 236).

Manuel Domingues de Andrade define as obrigações facultativas "aquelas que têm por objecto uma só prestação, simples ou complexa, só esta sendo devida, mas competindo ao devedor o direito de libertar-se do vínculo mediante uma outra prestação, sem necessidade de consentimento do credor" (Teoria geral das obrigações, 3.ed., 1966, p. 212). 

Consideremos um exemplo: Mateus adquire de Joaquim um exemplar da primeira edição impressa da Bíblia, mas Joaquim se reserva a faculdade de, em lugar da Bíblia, entregar a Mateus um outro exemplar de primeira edição impressa −p.ex., o da Comédia de Dante Alighieri. 

Assim, há, nas obrigações facultativas, uma prestação principal, e esta prestação é o que constitui o objeto da obrigação; mas na mesma obrigação se agrega, em caráter acessório, uma segunda prestação que é um meio liberatório que se faculta ao devedor. Desta maneira, é da prestação principal que resulta a natureza do contrato: se essa prestação for nula, diz Guillermo Borda, "queda sin efecto la obligación accesoria", mas, ao revés, "la nulidad de la obligación accesoria no tiene ninguna influencia sobre la principal" (Manual de obligaciones, 6.ed., 1975, p. 230).

Em que se diferenciam, de um lado, as «obrigações facultativas» e, de outro lado, as «obrigações alternativas»?

Como já se indicou no item 1.034 desta série, Serpa Lopes deixara dito que na obrigação alternativa "a decisão de qual das duas coisas deva constituir o objeto da prestação depende da vontade do vendedor ou comprador (…)", de tal sorte que somente com a escolha da prestação há fundamento, tratando-se de negócio relativo a imóvel, para o registro correspondente.

Diversamente, nas obrigações facultativas, não há eleição do objeto a prestar, porque há uma prestação principal −é esta que dita e rege a natureza da obrigação.

Disso deriva que, nas obrigações alternativas, dando-se a impossibilidade de cumprir uma das prestações, o devedor haverá de satisfazer a outra; ao passo em que, nas obrigações facultativas, impossibilitada que seja a prestação principal, extingue-se o ajuste. 

Lê-se na doutrina de Salvat que, entre essas duas espécies obrigacionais, há uma diferença fundamental: nas obrigações alternativas compreendem-se várias prestações, e todas elas são igualmente devidas, ainda que o devedor haja de satisfazer apenas uma: a impossibilidade de cumprir-se uma das prestações faz com que se concentre na outra a obrigação contraída. Já nas obrigações facultativas, uma só é a prestação (a principal), mas o devedor tem a possibilidade de substituir essa prestação principal por outra, a acessória; de maneira que se a prestação principal resultar inexecutável, extingue-se a obrigação; diferentemente, nenhum reflexo há, quanto à prestação principal, se a impossibilidade afligir apenas a prestação acessória.

O que vai, sobretudo, interessar com esta diferenciação é o tema do momento da transferência dominial, ou seja, para nosso quadro específico do registro de imóveis, o tempo em que caberá admitir o acesso do título para a constituição do direito real imobiliário correspondente.

Ficou visto que, nas obrigações alternativas, apenas com a escolha do devedor −e documentada essa escolha− é que caberá o registro do título de transferência do imóvel.

A solução é diferente quanto à venda facultativa.

Disse, a propósito, Serpa Lopes, que, dois sendo os objetos devidos na venda alternativa, só com a escolha de um desses objetos pode considerar-se instituído o título material da transferência de que se trate.

Mas, na venda facultativa que tenha por objeto um imóvel, o que ocorre é a reserva do vendedor em entregar coisa diversa (p.ex., um bem móvel ou um montante em dinheiro). Disso deriva, prosseguiu Serpa Lopes, que "uma só coisa permanece in obligatione, ao passo que a outra in facultate solutionis tantum" (Tratado dos registos públicos, item 550); por isso, concluiu, "a venda facultativa constitui um título translativo da propriedade". E continuou: "Posto que haja outra coisa in facultate solutionis, o imóvel objeto da venda está apto a ingressar no patrimônio do comprador, como de sua propriedade, e como proprietário se mantém, enquanto o vendedor não exercitar a faculdade a que se reservou".

Assim, caberia admitir-se o registro da venda facultativa, enunciando-se a condição relativa à prestação substituinte (neste sentido, Lisipo Garcia e Serpa Lopes). 

Note-se, entretanto, que essa condição −referível à prestação acessória− não é de caráter resolutivo, porque, assim referiu Serpa Lopes com apoio na doutrina de Coviello, neste quadro "a faculdade do vendedor constitui um mero arbítrio de sua parte, surgindo como uma condição potestativa". 

Bem se avista o problema −e, por sorte, é rara a negociação imobiliária com esse caráter de prestação substituinte−, repete-se: bem se avista que, uma vez admitido o registro de uma venda facultativa de imóvel, enunciada a condição, esta deve subordinar-se a determinado prazo contratual ou suscetível de notificação para o exercício eventual do vendedor, sob pena de grave insegurança para as alienações e onerações futuras.