(da série Registros sobre Registros, n. 308)
Des. Ricardo Dip
1.030. Dando sequência ao capítulo referente ao registro da compra e venda de imóveis, trataremos agora, com a brevidade que corresponde, das categorias da venda ad corpus e da venda ad mensuram.
A distinção entre essas duas espécies de venda foi adotada, no direito brasileiro, a partir do Código civil de 1916 (art. 1.136), existindo já, a essa altura, muitos precedentes de acolhida, no direito comparado, deste discrimen entre as vendas ad corpus e ad mensuram (Clóvis Beviláqua, a propósito, alista 14 códigos que admitiam, então, ambas essas categorias, códigos tanto da Europa −p.ex., da Alemanha, da Espanha, da França, da Itália−, quanto da América hispânica: v.g., da Argentina, do Chile, do Uruguai, do México).
Aplicável somente às alienações imobiliárias, a distinção entre a venda ad corpus e a venda ad mensuram tem por critério um acidente do imóvel. Sendo uma substância, o imóvel possui seus acidentes, entre eles o da quantidade. E é essa quantidade o fundamento do discrimen entre essas duas espécies de venda.
O tema reporta-se ao suposto de um defeito −poderíamos pensar num vício redibitório (assim o aponta, p.ex., Caio Mário da Silva Pereira), ou seja, de um defeito oculto, um defeito não visível que se encontra na quantidade do imóvel objeto da compra e venda. Quantidade que se encontre, realmente, maior ou menor do que a indicada no título aquisitivo.
Nesse quadro, tem-se que a venda pode ser reportada à totalidade do imóvel −ou seja, o imóvel é alienado como coisa certa, coisa demarcada, de maneira que o preço correspondente não levou em conta eventuais partes do prédio que, a mais ou a menos, pudessem interferir nesse preço. Em outras palavras, o comprador e o vendedor negociam sobre um todo, sem ocupar-se de referir o preço fundamentalmente à dimensão do imóvel; daí que a divergência do título quanto à realidade quantitativa do prédio não tenha relevância.
Trata-se aí da venda ad corpus. Disse, a propósito, Orlando Gomes, que essa venda indica o imóvel como coisa certa e discriminada, sendo irrelevante (ou até omitida) a determinação de sua área, de modo que o preço não se estipula por medida de extensão: "O imóvel é vendido como corpo certo, individualizado por suas características e confrontação, e, também, por sua denominação, quando rural. Note-se que a referência a dimensões não descaracteriza a venda ad corpus, se não tem a função de condicionar o preço" (Contratos, item 177).
Já na venda ad mensuram tem prevalência a quantidade do imóvel, suas dimensões (o critério do preço é a unidade de medida: alqueire, metro quadrado, metro de frente -cf. Ademar Fioranelli), de tal sorte que o comprador tem direito à complementação da área a menos ou, até mesmo, ao abatimento do preço e à rescisão do contrato. A tanto se destinam, respectivamente, as ações ex empto (para que se complemente a área), æstimatoria (relativa à redução do preço) e redhibitoria (de rescisão do negócio −cf. Caio Mário, Instituições de direito civil, item 221). Quanto ao vendedor, presume-se ter ele conhecimento do imóvel de seu domínio, mas, ao revés, tanto prove sua ignorância quanto a isto, poderá exigir do comprador o complemento do preço ao a restituição do excesso aquisitivo.
Essa matéria vem tratada no art. 500 de nosso vigente Código civil, dispondo-se, em resumo, que, se na venda de um imóvel, estipular-se o preço tendo por critério a quantidade (a lei fala em "medida de extensão", ou ainda quando no título for determinada área, dando-se a hipótese, entretanto, de essa dimensão não à realidade, "o comprador terá o direito de exigir o complemento da área, e, não sendo isso possível, o de reclamar a resolução do contrato ou abatimento proporcional ao preço" (caput do art. 500).
Prevê ainda o Código a hipótese de uma referência somente enunciativa à dimensão do imóvel, e, sendo assim, dispõe irrelevante a diferença não excedente de um vigésimo da superfície total enunciada no título, ressalvando ao comprador "o direito de provar que, em tais circunstâncias, não teria realizado o negócio" (§ 1º do art. 500). Já observara Clóvis Beviláqua, ao tempo do Código civil de 1916, que diferença tão diminuta não deveria mesmo autorizar uma ação judicial.
Depois de referir a hipótese de o vendedor pretender o complemento do preço −quanto o imóvel possua, realmente, maior área− ou a devolução do excedente do título § 2º do art. 500), o Código trata da venda ad corpus: "Não haverá complemento de área, nem devolução de excesso, se o imóvel for vendido como coisa certa e discriminada, tendo sido apenas enunciativa a referência às suas dimensões, ainda que não conste, de modo expresso, ter sido a venda ad corpus" (§ 3º do art. 500).
Importando-nos aqui, de maneira principal, o tema do registro da compra e venda, é preciso salientar que uma coisa é admitir, no âmbito negocial, a validade de aquisições imobiliárias ad mensuram, permitindo-se, pois, as opções de complemento de área, abatimento de preço e rescisão do ajuste. Outra, muito diversa, é permitir que os registros aquisitivos se afastem da disposição do § 2º do art. 225 da Lei 6.015, de 1973, que assim prescreve: "Consideram-se irregulares, para efeito de matrícula, os títulos nos quais a caracterização do imóvel não coincida com a que consta do registro anterior". Isto que alguns têm incluído no âmbito do princípio da continuidade (passando ao largo de que nisto não haveria a dinâmica formal e material da consecutividade, que é o conteúdo mais próprio desse princípio), mas, de novo, isto que se tem aqui e ali referido como uma espécie da continuidade, interdita o registro de títulos cujo imóvel esteja descrito em desconformidade com o constante da matrícula (ou, quando o caso, da transcrição).
Neste mesmo sentido, disse Ademar Fioranelli:
"(…) as questões retratadas dizem respeito à relação negocial entre as partes contratantes, sem interferência no direito real inscrito, já que o rigor dos princípios da especialidade objetiva e disponibilidade deve ser observado, não podendo ser aceita descrição do imóvel sob o manto dos dispositivos do art. 1.136 e par, único do CC [refere-se o autor ao Código civil de 1916; agora, cf. art. 500 do Código de 2002], sob pena de infringência dos referidos princípios e do disposto no art. 225, § 2º, do Regulamento de Registros Públicos".
Prossegue Fioranelli, depois de acenar à possibilidade de retificação do registro (art. 213), precedendo ao do título aquisitivo:
"(…) as regras pertinentes à venda ad corpus e ad mensuram cuidam das relações entre comprador e vendedor, e têm em mira facultar ou não ao adquirente a exigência de complementação de área após a consumação do negócio. Nenhum reflexo têm tais regras sobre o direito que cabe ao proprietário atual de retificar, no registro de imóveis, uma vez comprovada divergência entre as medidas reais e as lançadas no assento do Registro Público, cujas expressões não devem sequer ser mencionadas ou inseridas nas matrículas abertas em correspondência aos títulos apresentados ou mesmo nos registros efetuados" (Direito registral imobiliário, p. 496).
Essa orientação, assim indicou Ademar Fioranelli, é a que, de maneira pacífica, prevalece na jurisprudência administrativa no Estado de São Paulo.