(da série Registros sobre Registros, n. 284)
Des. Ricardo Dip
980. Entre as questões a examinar-se, no processo extrajudicial da usucapião, pelo registrador de imóveis (e, por igual, antes dele, ainda em fase anterior ao processo, pelo tabelião de notas, para a extração da ata notarial), está a do tempo da posse do imóvel usucapiendo −tempus possessionis
Trata-se aí de um dos elementos fundamentais da usucapião, na medida em que considera a continuidade de uma situação estática −possessio continua−, que, já pela aparência de persistência possessória, gera confiança comunitária na propriedade correspondente do imóvel. E é exatamente por isto que se reclama alguma sorte de proteção defensiva.
Esse requisito da aparência perseverante para a posse ad usucapionem explica, por exemplo, a impossibilidade de usucapir servidões não aparentes (para o direito brasileiro vigente, cf. o art. 1.379 do Cód.civ.de 2002 −arg. a contrario sensu; e, antes, arts. 696 e 697 do Cód.civ. de 1916).
Ainda que em diferentes ordenações positivas sejam diversas as determinações do tempo de posse exigível para a usucapião, pode afirmar-se que a continuatio possessionis −a continuidade da posse− seja um atributo da natureza mesma das coisas (natura rerum).
Tem-se, pois, não bastar a simples posse do bem suscetível de usucapião, por ser necessário que essa posse seja continuada temporalmente, vale dizer, que a ela concorra o acidente de algum tempo contínuo, tempo cuja quantidade está assinada na lei positiva, o que inclui, ao menos em princípio, possa a quantificação desse tempo provir também de norma costumeira.
A expressa menção do tempo de posse no pedido extrajudicial de usucapião é necessária para saber-se de qual modo se trata de afirmar a aquisição da propriedade: se por usucapião extraordinária, ordinária, especial urbana, coletiva urbana, indígena ou até a “familiar”, que antes parece ser, como já ficou dito, uma sorte adjudicação compulsória.
Todavia, cabe observar que essa indicação do tempo de posse, a despeito de sua necessidade para o processamento extrajudicial da usucapião, não importa em uma imperiosa congruência fundacional com a decisão posterior do pedido pelo registrador. Com efeito, nada parece impedir que, solicitada, por exemplo, uma usucapião no modo ordinário, possa, a final, reconhecer-se caracterizada a usucapião sob o modo extraordinário. Símile solução já era e é de admitir na esfera judicial, por aplicação do critério consagrado no aforismo da mihi factum, dabo tibi ius −narra-me o fato, e eu te darei o direito. Em paralelo, pois, ao critério iura novit curia (ou seja, o juiz ou o tribunal conhecem o direito), também poderá acolher-se este outro critério> iura novit tabularius −o registrador conhece o direito: da sibi factum, dabit tibi ius (narra-lhe o fato, e ele, o registrador, te dará o direito).
981. A posse é a expressão sensível da propriedade dos bens exteriores, bens esses que constituem a matéria própria da virtude da justiça particular; ou seja, trata-se do modo material como se singulariza o exercício do domínio das coisas.
É por isto que a posse tem uma função probatória, e sua continuidade, ao largo do tempo, tem tamanha importância que ultrapassa, quanto aos bens imóveis, uma outra maneira de identidade e prova do domínio: é dizer, a posse supera, em dados casos, o registro público, que é também um modo, um modo formal, sistêmico, estruturado, de individualização, demarcação e atribuição formal da ordem dos bens externos na sociedade política.
Nunca é demais frisar, neste capítulo, que a posse das coisas como próprias (res privatim ut suas), excluindo uma concorrência hostil e anárquica, é um direito que se inscreve na própria natureza dos homens. Equivale a dizer que não se trata de um direito oriundo de um suposto pacto implícito entre os homens (tese adotada por, entre outros, Grotius e Puffendorf), nem de um direito apenas oriundo da lei positiva civil (opinião esta de Montesquieu, de Bentham, de Thomas Hobbes), ou de um direito próprio do despojo (assim o sustentou Cicero) ou exclusivamente dos frutos do trabalho. Mas, isto sim, reitere-se, o direito de propriedade privada é um direito proveniente da própria natureza.
Prosseguindo, saliente-se a relevância que se deve reconhecer na continuidade temporal das possessões com a circunstância mesma de que a teoria da posse foi, de início, um capítulo da teoria da usucapião (cf., a propósito, Alvarez Caperochipi), de tal sorte que, no plano de sua importância política, a posse por antonomásia é exatamente a ad usucapionem, equivale dizer: a posse exercitada a título de dono (possessio cum animo domini), tendo aí o possuidor, pois, a intenção de apropriar-se da coisa (possessio cum animo rem sibi habendi). Ou seja, neste quadro ad usucapionem, não se trata só do fato de uma posse (materia meramente ex qua) −embora essa possessão configura o objeto do ato moral−, mas de uma posse cujo fim, em sentido próprio (i.e., finis remotus) é a aquisição de domínio. Distingam-se: a posse, como matéria ex qua do ato moral, responde às perguntas «que» (quid), «que coisa se faz», «que se age»; mas a posse, com seu ânimo de domínio, é dizer, com a intenção aquisitiva da propriedade, contempla um fim remoto e responde às perguntas «por quê», «por que se faz deste modo», «por que se age», «por que se possui».
A posse em conceito de dono, ou seja, com o espírito ou alma de proprietário −além disto, posse pública, posse pacífica, posse ininterrupta−, é a posse idônea à usucapião, de maneira que ela contrasta com a posse precária (p.ex., a posse exercitada por locatários, ou comodatários, ou depositários), com a posse clandestina (posse oculta), com a posse violenta e com a posse descontínua, possessões estas últimas que não se habilitam para a usucapião. Classicamente, já se afirmava que a posse, para a aquisição dominial, além de contínua no tempo, não poderia ser nec vi, nec clam, nec precario. Leia-se, a propósito, no art. 1.238 do Cód.civ. brasileiro de 2002: “Aquele que, por quinze anos, sem interrupção, nem oposição, possuir como seu um imóvel, adquire-lhe a propriedade (…)”.
A continuidade da posse −ou seja, a permanência da possessão ante a inércia do proprietário− extingue-se ou de modo natural (por sua cessação fática) ou de modo civil (p.ex., a citação nas demandas restitutórias; o reconhecimento, pelo possuidor, do correspondente direito do dominus). Note-se, entretanto, que a continuidade da posse não exige a permanência subjetiva de um só e mesmo possuidor, pois são possíveis tanto a união de possessões (agregação, junção, acessão de posses: acessio possessionum), quanto a sucessio possessionis (a sucessão na posse de um causante hereditário).
Por isto, o art. 216-A da Lei 6.015 prevê que a ata notarial indique o tempo de posse continuada −e a continuação possessória, saliente-se, é um fato de prova ordinariamente muito complexa−, posse contínua “do requerente e de seus antecessores” (i.e., o tempo da do solicitante adicionada ao tempo dos que, por acessio vel sucessio temporis, hajam possuído o imóvel de maneira contínua).