(da série Registros sobre Registros, n. 281)
Des. Ricardo Dip
- O tema dos títulos idôneos para o registro da usucapião inovou-se, entre nós, de maneira muito relevante com o Código de processo civil de 2015, regulativa que, em seu art. 1.071, incluiu na Lei de registros públicos um dispositivo, que tomou o número 216-A, instituindo-se o processo extrajudicial declaratório da usucapião, concorrente com a demanda judicial de mesmos fins declaratórios.
O usus loquendi vem instaurando o termo impróprio “usucapião extrajudicial” para referir-se ao processo da usucapião na via extrajudicial. Mas esse uso é impróprio porque toda a usucapião é extrajudicial, ou seja, apenas se reconhece ou declara, pelo juiz e agora pelo registrador, um modo aquisitivo consumado realmente e sempre extra iudicium.
Lê-se no caput desse art. 216-A: “Sem prejuízo da via jurisdicional, é admitido o pedido de reconhecimento extrajudicial de usucapião, que será processado diretamente perante o cartório do registro de imóveis da comarca em que estiver situado o imóvel usucapiendo, a requerimento do interessado, representado por advogado (…)”.
Ao referir-se à “via jurisdicional”, essa previsão do art. 216-A da Lei 6.015 supre pelo conceito de “processo de jurisdição contenciosa”, ou até mesmo, se se quiser, pelo termo complexo “processo de jurisdição”, porque, em sentido estrito, a jurisdição é própria da atuação judicial contenciosa, Todavia, sendo de uso corrente expandir o vocábulo “jurisdição” para abranger as hipóteses das administrações públicas de interesse privado (falando-se em “jurisdição voluntária”) e até mesmo não sendo incomum estender essa palavra jurisdição à esfera da “jurisdição administrativa” (que se distingue da voluntária, por aquela não admitir o controle contencioso, e esta, a administrativa, permiti-lo), parece pedagógico (e não pleonástico ou até rebarbativo) o uso do termo complexo “jurisdição contenciosa”.
Abra-se aqui um breve parêntese para observar ser emblemática a referência da ideia “administração pública do direito privado” ao grande jurista italiano Guido Zanobini. Calha, porém, que esse enunciado não provém, de maneira originária, das lições de Zanobini, certo que este mesmo autor o atribuiu a um pensador germânico, Hänel, cuja obra é de 1892, ao passo em que esses discutidos termos foram usados por Zanobini em um artigo −“Sull’amministrazione pubblica del diritto privato”− que se publicou apenas em 1918, na Rivista di diritto pubblico.
Pode dizer-se que, num dado aspecto, a novidade do Código de processo civil de 2015 em instituir um processo extrajudicial de usucapião não era de todo nova entre nós, porque, embora de maneira restrita, a Lei 11.977/2009 (de 7-7), em seu art. 60, previra algo similar: “Sem prejuízo dos direitos decorrentes da posse exercida anteriormente, o detentor do título de legitimação de posse, após 5 (cinco) anos de seu registro, poderá requerer ao oficial de registro de imóveis a conversão desse título em registro de propriedade, tendo em vista sua aquisição por usucapião, nos termos do art. 183 da Constituição Federal”. Esse dispositivo foi já, no entanto, revogado de modo expresso, nos termos do inc. IV do art. 109 da Lei 13.465/2017 (de 11-7).
Porque, porém, muito mais amplamente passou a admitir-se, com o Código de 2015, o reconhecimento extrajudicial da usucapião, há fundamento razoável para aí falar-se em novidade legislativa. É que todas as diferentes espécies e subespécies de usucapião no direito brasileiro atual (usucapião ordinária, extraordinária, especial rural e urbana, indígena, coletiva, familiar) −e, até mesmo, suposto se viabilize em nosso direito, a usucapio secundum tabulam (arts. 1.242 do Cód.civ. e 214, § 5º, da Lei 6.015/1973), essas partes todas e subpartes subjetivas da usucapião podem processar-se agora também no âmbito extrajudicial.
Não faltará, em todo o caso, que se aponte o resguardo da intervenção jurisdicional num processo que, tal o dispõe a lei, comece na via extrajudicial, porque, efetivamente, não se pode excluir a intervenção judiciária eventual −quer administrativa, quer contenciosa− no processo de reconhecimento registral da usucapião, como se extraem, respectivamente dos § 7º e 10 do art. 216-A da Lei 6.015: “Em qualquer caso, é lícito ao interessado suscitar o procedimento de dúvida, nos termos desta Lei” (§ 7º); “Em caso de impugnação do pedido de reconhecimento extrajudicial de usucapião, apresentada por qualquer um dos titulares de direito reais e de outros direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo e na matrícula dos imóveis confinantes, por algum dos entes públicos ou por algum terceiro interessado, o oficial de registro de imóveis remeterá os autos ao juízo competente da comarca da situação do imóvel, cabendo ao requerente emendar a petição inicial para adequá-la ao procedimento comum” (§ 10). A regra sob exame estabelece o processamento extrajudicial da usucapião “diretamente perante o cartório registro de imóveis”, de maneira que os efeitos a extrair da instauração do processo não retroagem ao tempo da expedição da ata notarial relativa ao pleito (cf. inc. I do art. 216-A da Lei n. 6.015, de 1973).
973. Diz a regra em exame que o processo tramitará “perante o cartório do registro de imóveis da comarca em que estiver situado o imóvel usucapiendo“. Tem-se de considerar que o pedido, regularmente instrumentado, deve ser objeto de prenotação no livro 1 do ofício de registro de imóveis competente, de que resultam efeitos similares à distribuição de um processo no judiciário. Disso deriva uma sorte de prevenção do cartório para a hipótese de novos pedidos, na via extrajudicial, de usucapião de um mesmo imóvel.
Tem-se observado, e com acerto, que o processamento da usucapião por um cartório de registro de imóveis importa numa situação raríssima, qual a de o registrador expedir, ele próprio, o título formal que se registrará. Daí a proposição prudente de que a tramitação desse processo melhor pareceria da competência do tabelião de notas..
A lei indica uma competência absoluta para o processamento extrajudicial da usucapião, qual a do cartório do registro de imóveis da comarca em que estiver situado o imóvel usucapiendo. Não há, entretanto, regra legal complementar referente à competência específica quando na comarca houver mais de um ofício de registro de imóveis. Quando seja caso de pretensão relativa a imóveis já inscritos em cartório que tenha competência contemporânea para os registros e averbações relativos a esses imóveis, a questão não se põe: esse cartório é o competente. Mas há situações, por exemplo, (i) de mudança da competência territorial quanto a imóvel já inscrito, ou (ii) de imóveis ainda não inscritos, e, quanto a estas hipóteses, a competência parece, segundo a lei, deva entender-se livre, firmando-se pela prenotação do pedido. Assim, cabe distinguir, na lei, entre, de um lado, o caráter absoluto da competência de comarca da situação do imóvel usucapiendo (com a nulidade correspondente de processos que não a observem), e, de outro lado, a liberdade relativa da eleição de cartório dentro da comarca.