(da série Registros sobre Registros, n. 264)
Des. Ricardo Dip
941. Contempla o item 21 do inciso I do art. 167 da Lei brasileira 6.015, de 1973, o registro stricto sensu das “citações de ações reais ou pessoais reipersecutórias, relativas a imóveis”. Essa previsão −que concerne à prática de registro em sentido estrito− concorre, na legislação nacional em vigor, com várias hipóteses de averbação (em algumas situações ditas premonitórias) que se referem a constrangimento potencial ou atual de imóveis.
A citação a que se refere esse dispositivo é um ato processual. Consagrou-se a divisão dos atos processuais em atos da causa e atos do juízo, aqueles referindo-se de modo direto ao objeto da demanda, ao passo em que os atos do juízo compreendem os que respondem à tramitação do processo −intimações, notificações, audiências, citações, etc. (cf., por muitos, João Mendes de Almeida Júnior, Direito judiciario brazileiro, 1918, p. 265).
O mesmo João Mendes, depois de observar que “não há processo no infinito, isto é, sem princípio nem fim” (p. 403), indicou ser a citação o passo inicial do processo com que se chama o réu a juízo: é “o chamamento de alguém a Juízo para ver-se-lhe propor a ação e para todos os atos e termos da ação até final sentença e sua execução” (p. 404). Nosso vigente Código de processo civil, em seu art. 238, exprime ser a citação “o ato pelo qual são convocados o réu, o executado ou o interessado para integrar a relação processual”, preceituando a seguir que, para a validade do processo, “é indispensável a citação do réu ou do executado, ressalvadas as hipóteses de indeferimento da petição inicial ou de improcedência liminar do pedido” (art. 239).
Essa previsão do Código ajusta-se ao conceito clássico −jurídico-natural e, não custa dizer, até mesmo divino-positivo− de citação. Tome-se por exemplo a noção que lhe deu João Monteiro, dizendo-a “ato pelo qual se chama a juízo aquele de quem se pretende alguma cousa” (Programma do curso de processo civil, 1925, p. 284), para invocar, em nota de rodapé, passagens do Antigo e do Novo Testamento, o princípio em apoio do que é expressão de um justo natural: nemo debet inauditus damnari −ninguém deve condenar-se sem ser ouvido; Nicodemo pergunta de maneira retórica: “Permite nossa Lei condenar alguém antes de o ter ouvido e conhecido seus fatos?” (S.João, 7, 51). Também no livro do Gênesis, onisciente embora, Yahvé, antes de proferir juízo contra Adão, convocou-o e deu-lhe o direito de defesa: “Vocavitque Dominus Deus Adam, et dixit ei: Ubi es?” −Deus chamou Adão e disse-lhe: onde estás?”, e perguntou-lhe: “Acaso comeste da árvore de que te proibi comer? −nisi quod ex ligno de quo præcepteram tibi comederes, comedisti? (Gên., 3, 9 et sqq.).
Tal se sabe, Adão –a quem se delegara a guarda do Paraíso– e sua mulher Eva tinham por preceito não comer do fruto da árvore da ciência do bem e do mal. Eva, entretanto, foi induzida a vulnerar esse preceito, supondo-o arbitrário e destituído de razão (Gên., 3, 4-5), ou seja, inclinou-se ela, a seu gosto, a substituir a regulação divina, de maneira que, abandonando a observância da lei, tornou-se Eva a primeira ativista da história: em vez de julgar segundo a lei, julgou em contorno da lei. Não impôs Yahvé, todavia, diretamente, o tríplice castigo que se infligiu aos primeiros pais do gênero humano e toda sua descendência, dando-se, antes, a instauração de um processo que teve começo exatamente pelo chamamento ou citação (vocavitque Dominus Deum Adam…) Também isto ocorreu antes de punir-se o crime de Caim (Gên., 4, 9 et sqq.).
É de João Mendes a lição de que a regra de ninguém ser julgado legitimamente sem ser ouvido “é um princípio não só de direito natural, como de direito divino” (p. 403). Com efeito, é notória a exigência jurídico-natural do processo para a condenação (penal, civil, administrativa, trabalhista, tributária, não importa qual condenação); um processus secundum naturam, um caminho ou método para a aplicação heterônoma do direito. As leis naturais do processo compõem um patrimônio comum da humanidade, o que já se denominou «metafísica natural da inteligência», leis essas que estão para a razão prática do homem tal como os primeiros princípios demonstrativos estão para a razão especulativa (S.Tomás, S.th., I-II, 94-2). E esse processo tem por ponto fundamental a seu começo a citação do demandado.
O vernáculo «citação» provém do verbo latino cito, citare, citavi, citatum, com as acepções, entre várias outras, de convocar, chamar, pôr em movimento, mencionar, provocar, apressar (Torrinha). No período clássico do direito romano (circa 130 a.C.-circa 230 d.C.), admitia-se que a citação fosse ato de iniciativa e execução próprio do demandante (denuntiatio ex auctore), citação privada com que até se permitia apresentar-se o demandado à força perante o pretor (cf. Fernando Luso Soares, Direito processual civil, 1980, p. 291). Posteriormente, passou-se a admitir a denunciatio ex auctoritate (citação oficial autorizada) ou ainda a evocatio, citação por ordem escrita do pretor (litteris) ou mediante edital (vidē Max Kaser, Direito privado romano, 1999, p. 466).
A citação corresponde ao primeiro chamamento de um demandado e tem duas patentes finalidades: (i) a de dar-se a ciência a esse demandado da pretensão que contra ele se dirige, e (ii) propiciar-lhe audiência, ou seja, que se defenda e produza provas em seu benefício. A vigente Constituição federal brasileira (1988) estende a garantia de defesa e de contraditório aos processos administrativos –“aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes” (item LV do art. 5º)−, com que a norma implicita a necessidade da citação inicial nutrida da possibilidade de ciência do conteúdo da pretensão dirigida contra o demandado. Emblema da imprescindibilidade de a citação ir além do mero chamamento, incluindo neste chamado o conteúdo da pretensão, pode recolher-se da literatura, com a célebre obra de Franz Kafka (1883-1924), O processo, romance em que a personagem principal, o bancário Josef K., responde a uma demanda cuja acusação lhe é recusado pudesse conhecer. Esta injustiça é tão flagrante e independente de lei positiva, que a expressão processo kafkiano se tornou significante de algo tido por inconcebível: Josef K., assim o disse Otto Maria Carpeaux (História da literatura ocidental, 2012, IV, p. 2.612), é perseguido “por tribunais misteriosos”, ou seja, dotado de critérios livres (na linha da escola da livre indagação −p.ex. François Geny, Eugen Ehrlich, Oskar von Bülow, Hermann Kantorowicz−, ou escola do direito livre, a que não faltou, com impiedade, que alguém denominasse “escola livre do direito”; cf, brevitatis causa, as fortes críticas que lhe destinou Carlos Maximiliano, in Hermenêutica e aplicação do direito, 9.ed., 1979, p. 65 et sqq.).
O item 21 do inciso I do art. 167 da Lei 6.015 apenas prevê o registro das citações relativas a duas espécies de processo judicial, quais sejam as relativas às ações reais e às pessoais reipersecutórias (imobiliárias). Não abrange a citação que não seja referente a essas espécies de demandas, nem parece abarcar, extensivamente, as citações em processos de natureza administrativa. Diversamente, é muito provável que, sem embora haja citação, possa registrar-se a comparência espontânea do demandado nas ações reais e nas pessoais de caráter reipersecutório, à luz do que dispõe a regra do § 1º do art. 239 do Código de processo civil: “O comparecimento espontâneo do réu ou do executado supre a falta ou a nulidade da citação, fluindo a partir desta data o prazo para apresentação de contestação ou de embargos à execução”.