(da série Registros sobre Registros, n. 246)
Des. Ricardo Dip
910. Continuemos a examinar a matéria relativa ao projeto de construção que deve ser apresentado para viabilizar o registro da incorporação imobiliária, tratando de referir, ainda que concisamente, sobre a relevância desse requisito para a vida ordenada das cidades, de sorte que possamos ainda uma vez salientar a importante contribuição do registro imobiliário para a reta consecução da vida nas cidades.
Observemos, entretanto, à partida, que o vocábulo «cidade» pode tanto significar (i) a sociedade humana (neste sentido, o termo “Cidade de Deus”, que dá título à célebre obra de S.Agostinho), quanto referir-se (ii) à cultura, ao refinamento, aos bons modais, ou ainda (iii) à urbs , que é a ideia mais comum de cidade, equivale a dizer: as “construções coletivas edificadas em torno de um foco e de uma função política, social, econômica, cultural” (Patricio Randle, in Aproximación a la ciudad y el territorio, 2000, p. 13).
A cidade, com esta última acepção, é conteúdo e é continente; é conteúdo humano e social num continente físico e edilício; de maneira que as cidades têm algo de pessoa e algo de lugar, “más de persona que de lugar”, disse Randle, o que bem explica “porque las ciudades pueden tener personalidad de un modo que no es posible en los paisajes naturales” (p. 14). É que nas cidades se conjugam a liberdade humana e a necessidade natural dos homens, de tal sorte que, ainda uma vez seguindo as pisadas de Randle, que foi o maior urbanista da América hispânica, a criação de uma cidade antes mais parece assemelhar-se ao desenho e aos cuidados de um jardim, no qual nada se há de fazer por mero capricho, porque o jardineiro deve buscar a conciliação entre as condições naturais do lugar e os costumes de seus habitantes, suas tradições, sua história, sua vocação, suas expectativas, dando exemplo ao modo da prudente atuação dos urbanistas.
Alguns animais brutos –p.ex., o castor ou o joão-de-barro– constroem e sempre construíram seus ninhos ou casas sem necessidade de projetos, de maneira natural e instintiva, e esse pássaro, o joão-de-barro, é até conhecido, na linguagem popular, pelo nome de pedreiro, exatamente em virtude da construção de seu ninho, que tem e teve sempre a invariável forma de um forno (razão também pela qual o joão-de-barro é chamado de forneiro).
Os homens, diversamente, constroem e, ao largo da história, construíram seu habitat com inúmeras variadíssimas formas, desde quando, ao início, trataram de atender a seus credos religiosos, defendendo, por meio da construção de muralhas, os limites dos têmenos (recintos sagrados), para assim, em sua crença, “manter à distância antes os maus espíritos do que os inimigos humanos” (é o que se lê em Lewis Mumford, A cidade na história, p. 44). Logo, porém, vê-se servirem também essas muralhas tanto à defesa dos que estavam no interior da cidade, quanto ao impedimento do que Mumford chamou de “fuga dos desesperados”, diante do assédio dos inimigos que cercavam as cidades para cortar-lhes o suprimento alimentar (id., p. 59).
É assim que, diversamente da rotineira construção das moradas de alguns animais brutos, a cidade humana pode erguer-se de maneira ordenada –i.e., dirigida à satisfação dos fins humanos materiais, morais, intelectuais e espirituais– ou pode implantar-se desorientada desses fins, uma “cidade sem alma” (na expressão de Oswald Spengler), um cidade que perdeu seu rumo. Entre vários modos dessa desordenação da cidade, avulta o da aversão aos padrões físicos, funcionais, sociais e culturais que a civilização ocidental herdou da polis grega: tem-se aí o que Lewis Mumford chamou de anti-city , uma antipolis que pode até resultar em uma negação da própria essência do urbano (cf. Carlos García Vázquez, in Antípolis: El desvanecimiento de lo urbano en el Cinturón del Sol, 2011, passim).
A cidade, na acepção de sociedade política, tende a arquitetar-se num lugar: raros são os casos de cidades perseverantes em deslocação territorial; pode havê-las, e a história aponta as tribos nômades descendentes de Ismael, bem assim os hebreus na larga trajetória do êxodo do Egito até o ingresso na terra de Canaã. Mas não é o comum da história: os homens têm uma tendência inata a enraizar-se em um local determinado; a sedentariedade é-lhe algo natural; o nomadismo, a exceção, geralmente induzida pela necessidade (esgotamento de recursos naturais, erosão, secas, inundações etc. -cf. Randle). As cidades consistem, pois, ordinariamente, na residência habitual de uma dada população, para a qual se instituem atividades de comércio, de administração, de saúde, de lazer, de culto, etc. E importa que bem se ordene a ocupação do território da cidade, até porque já sua mesma hipertrofia –ou seja, seu excessivo crescimento aflige-lhe a vitalidade cultural e social, distorcendo ou mesmo perdendo de vista os fins para as quais a cidade foi criada (cf. Patricio Randle, in Razón de ser del urbanismo, p. 58 et sqq.).
A administração municipal, portanto, deve exercer um papel ordenador da cidade, sem que isso acarrete o falso juízo de que a cidade seja uma criação da lei, quando, em vez disso, ela é anterior ao estado, ela é um organismo natural e histórico que guarda correspondência com a politicidade natural do homem: a cidade não é uma simples acumulação de indivíduos; a cidade não é um mero “lugar do mercado” (Max Weber); a cidade não é um reduto darwinista em que prevalece a lei do indivíduo mais forte, a arbitrariedade, a lei da selva, nem é, em contrapartida, o simples artefato uniformista das construções planificadas pelo estado, senão que, tão bem assim a definiu Aristóteles, é a colônia natural das famílias, uma communitas communitarum.
A matéria relativa à aprovação administrativa dos projetos de construção abrange ocupações de diversos segmentos do direito, como o dos resíduos, o ambiental, o sanitário e, muito particularmente e de maneira não raro sobreposta a de temas já abarcados naqueles ramos jurídicos, o da polícia das construções, que, no caso brasileiro atual, tem por objeto o planejamento e o controle do uso do solo, de seu parcelamento e de sua ocupação (cf. item VIII do art. 30 da Constituição federal de 1988). Compete aos municípios a regulamentação correspondente, que se expede de comum por um código de obras, a que convergem normas de caráter complementar (vidē Hely Lopes Meirelles, o.c., e ainda seu Direito municipal brasileiro, 16.ed., 2008, p. 496 et sqq.).
O projeto de construção que deve apresentar-se para fins de registro da incorporação edilícia exige a observância dos requisitos previstos na normativa e deve elaborar-se por engenheiro ou arquiteto com habilitação legal e inscrição no conselho profissional correspondente. Cabe à administração municipal o controle da observância das regras aplicáveis na elaboração do projeto, em particular as previstas pela Associação Brasileira de Normas Técnicas (Abnt).
Tanto que satisfeitas as exigências legais, o projeto, aprovado pela administração municipal competente –ou seja, a do lugar do imóvel objeto da incorporação– dá ensejo a que se emita um alvará de licença de construção, que é, pois, o instrumento de aprovação administrativa do projeto. Trata-se de licença para construir –vale dizer, de aprovação em caráter definitivo (ao revés do que se passa com a mera autorização, cuja natureza corresponde a uma obra provisória: p.ex., a construção de uma banca de jornais em praça pública –Hely Lopes Meirelles, Direito municipal brasileiro, p. 497). É que a licença se correlaciona a um direito de construir, ao passo em que a autorização diz respeito a mera tolerância burocrática.
Pode ocorrer –assim o fez ver Flauzilino Araújo dos Santos (o.c., p. 228)– que a regulativa municipal distinga, de um lado, o alvará de licença de construção (i.e., o documento relativo à aprovação do projeto edilício), e, de outro lado, o alvará de execução da construção, porque o início das obras pode não convir em determinado período (suponha-se, p.ex., que o município preveja a realização de serviços públicos no entorno do imóvel objeto, estorvando-os, no interregno, a construção aprovada). O que a Lei 4.591/1964 exige, para os fins de registro da incorporação, é que se apresente prova do projeto de construção aprovado, é dizer: o alvará de licença da construção; não o alvará de execução das obras.