(da série Registros sobre Registros, n. 236)
Des. Ricardo Dip
893. A vigente Lei brasileira de registros públicos –Lei 6.015, de 1973– incluiu na lista do inciso I de seu art. 167, lista essa relativa aos títulos registráveis stricto sensu, o registro de causas relevantes para o condomínio edilício, objeto, entre nós, de legislação específica (a Lei 4.591, de 16-12-1964), com que se distingue do condomínio tradicional, regido pelo Código civil. São essas referidas causas as incorporações, as instituições e as convenções condominiais (cf. item 17 do aludido inc. I do art. 167 da Lei 6.015).
Comecemos por tratar da incorporação condominial.
No Brasil, mal ou bem, bem ou mal, definiu-se em lei o que se há de entender por incorporação imobiliária. Caio Mário da Silva Pereira foi o autor do projeto que redundou nessa Lei 4.591, de 1964, tratando de tipificar o negócio jurídico da incorporação, e, com efeito, mediante essa normativa, imprimiu-se à incorporação imobiliária a marca, assim era conveniente, de um negócio nominado ou típico, sem que, entretanto, num dado aspecto, a lei se tenha apartado de críticas, tais as enunciadas pelo mesmo autor do projeto, pois que a normativa “desceu à minúcia de uma definição”, o que não lhe pareceu adequado, “uma vez que ao legislador compete emitir comandos que se dirigem à vontade, ao invés de conceitos destinados à inteligência, como se exprime Clóvis Beviláqua” (“Incorporação imobiliária”, in VV.AA., Doutrinas essenciais -Direito registral, org. Ricardo Dip e Ségio Jacomino, vol. IV, p. 244-5). Daí que, diante de “deficiências e imprecisões” da lei, caiba ao doutrinador construir a noção adequada, assim a formulou Caio Mário: “contrato por via do qual uma pessoa física ou jurídica se obriga a promover a construção de edificações ou conjunto de edificações compostas de unidades autônomas, para alienação total ou parcial” (o.c., p. 245)
Recolhe-se ainda de valiosa doutrina de Melhim Nanem Chalhub, em seu Incorporação imobiliária (aqui compulsada na 4.ed., 2017): depois de referir-se ao sentido genérico do vernáculo “incorporação” –abarcando as acepções de inclusão, união, introdução ou ligação de uma coisa a outra, tal que ambas se agrupem ou agremiem–, o que remete ao verbo latino incorporo (infinitivo incorporare; dar corpo, unir) e ainda ao nominativo incorporatio, incorporationis (que Torrinha indica significar “encarnação”), Chalhub dá-lhe o significado de mobilização dos fatores produtivos “para construir e vender, durante a construção, unidades imobiliárias em edificações coletivas, envolvendo a arregimentação de pessoas e a articulação de uma série de medidas no sentido de levar a cabo a construção até sua conclusão, com a individualização e discriminação das unidades imobiliárias no Registro de Imóveis” (p. 9).
Tem-se aí um conceito explicativo que se molda ao desfiado com a Lei 4.591, de 1964, em que se lê: “Para efeito desta Lei, considera-se incorporação imobiliária a atividade exercida com o intuito de promover e realizar a construção, para alienação total ou parcial, de edificações ou conjunto de edificações compostas de unidades autônomas” (par. único do art. 28).
O conteúdo da incorporação imobiliária é, pois, o de atividades coordenadoras e executórias de empreendimentos prediais, em seu bojo compreendendo “a alienação de unidades imobiliárias em construção e sua entrega aos adquirentes, depois de concluídas, com a adequada regularização no Registro de Imóveis competente” (Melhim Chalhub, o.c., p. 10). Trata-se, portanto, de um “projeto empresarial de construção” (Luciano de Camargo Penteado, Direito das coisas, 2008, p. 384), empolgando a alienação antecipada de unidades juridicamente autônomas, com que se forma o capital necessário à edificação. Tal o salientou, porém, Ademar Fioranelli, certo que a incorporação imobiliária, no direito brasileiro vigente, caracteriza-se pela assunção, por parte de um incorporador, da iniciativa do empreendimento, ela reclama a disposição de alienarem-se as unidades do edifício projetado, com que deve sempre existir um vínculo “entre a alienação das frações ideais do terreno em que se assentará o edifício e o negócio da construção” (Direito registral imobiliário, p. 560). Nesse mesmo sentido, Melhim Chalhub observou que “a atividade de construção está presente no negócio jurídico da incorporação, mas incorporação e construção não se confundem, nem são noções equivalentes”, porquanto “a atividade da construção só integrará o conceito de incorporação se estiver articulada com a alienação e frações ideais do terreno e acessões que a elas haverão de se vincular (…)” (p. 10-11). Sem embargo, a incorporação pode caracterizar-se pela isolada alienação das frações ideais dirigidas a ulteriores unidades prediais, porque, embora abranja a construção, “não é necessário que a atividade da construção seja exercida pelo próprio incorporador (…)” (Chalhub).
Além da indicação constante do item 17 do inciso I do art. 167 da brasileira 6.015/1973, o registro da incorporação imobiliária no ofício predial prevê-se expressamente no art. 32 da Lei 4.591, de 1964; assim, em seu caput e, de modo complementar, em seu § 1º: “O incorporador somente poderá negociar sobre unidades autônomas após ter arquivado, no cartório competente de Registro de Imóveis (…). A documentação referida neste artigo, após o exame do Oficial de Registro de Imóveis, será arquivada em cartório, fazendo-se o competente registro”.
A obrigatoriedade desse registro –como explícita condição para que o incorporador possa alienar as unidades autônomas– reforçou-se na Lei 4.591 com norma da caráter penal (inc. I do art. 66), incluindo-se entre as contravenções relativas à economia popular, puníveis nos termos do 10 da Lei 1.521, de 26 de dezembro de 1951, a conduta de “negociar o incorporador frações ideais de terreno, sem previamente satisfazer às exigências constantes (…)” da Lei 4.591. Diz, a propósito, Mário Pazutti Mezzari, sequer ser lícito “elaborar contratos preliminares contemplando a obrigação de registro futuro da incorporação” (Condomínio e incorporação no registro de imóveis, 2.ed., 2002, p. 136).
Cuida-se de uma inscrição obrigatória, portanto, quando se trate de perfazer negócios cujo objeto sejam unidades imobiliárias futuras. Registro obrigatório, mas, bem o indicou Flauzilino Araújo dos Santos (Condomínios e incorporações no registro de imóveis, 2012, p. 209) um registro efêmero, porque
(i) sua validade se limita a 180 dias, findo o qual prazo deve revalidar-se o registro, atualizando-se o título (ou seja, a documentação, assim se expressa o art. 33 da Lei 4.591: “O registro da incorporação será válido pelo prazo de 120 dias, findo o qual, se ela ainda não se houver concretizado, o incorporador só poderá negociar unidades depois de atualizar a documentação a que se refere o artigo anterior, revalidando o registro por igual prazo”; o tempo de 120 dias foi elevado, nos termos do art. 12 da Lei 4.864, de 29-11-1965: “Fica elevado para 180 (cento e oitenta) dias o prazo de validade de registro da incorporação a que se refere o art. 33 da Lei nº 4.591, de 16 de dezembro de 1964”);
(ii) admite a potencialidade de o incorporador desistir da incorporação –ou vê-la denunciada (§ 3º do art. 35 da Lei 4.591)–, tanto que se assine um prazo de carência (art. 34: “O incorporador poderá fixar, para efetivação da incorporação, prazo de carência, dentro do qual lhe é lícito desistir do empreendimento”; sublinhe-se, todavia: “Em caso algum poderá o prazo de carência ultrapassar o termo final do prazo da validade do registro ou, se for o caso, de sua revalidação” -§ 2º do art. 34);
(iii) suporta exaurimento “com a averbação da construção e os registros da instituição e especificação e da Convenção de Condomínio, momento em que o imóvel ficará submetido ao regime do condomínio edilício stricto sensu” (Flauzilino dos Santos).
Adivinha-se que essa brevidade vital do registro da incorporação imobiliária possa acarretar, ainda que não de modo exclusivo, uma dada falta de cuidado na qualificação registral dos contratos relativos a negócios com unidades prediais futuras (cf. o aviso que desfiou Ademar Fioranelli, o.c., p. 563).
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