Atribuição de nome (segunda parte)

ATRIBUIÇÃO DE NOME (segunda parte)

                 Os nomes (nomina) têm alguma relação com as essências (numina) das coisas que eles exprimem e significam, ou seja, ainda que, num dado aspecto, sejam convencionais, os nomes não são arbitrários. Essa parece ser a principal razão por que a filosofia clássica se inclinou, frequentemente, a começar sua tratativa pela definição nominal –quid significatur per nomen–, assim o observou acertadamente um autor de nossos tempos (Martín Echavarría, em La praxis de la psicología. La Plata: Ucalp, 2009). Isso explica-se pelo bom fundamento de que ninguém pode designar o que não conhece (nullus potest significare id quod non cognoscit –S.th., I, q. 13, 10, sed contra).

                 Todavia, sem prejuízo de reconhecer-se que, de algum modo, haja sempre uma relação entre nomen e numen, não se há de concluir que o nome seja apenas atribuível em sentido próprio à essência designada, porque se admite de maneira frequente a expressão metafórica, a denominação por semelhança: p.ex., quando dizemos que a pacata mãe de família se converte em leoa para defender seus filhos, o que dá suporte a essa atribuição é a similitude da proteção materna com a audácia e fortaleza das leoas. Às vezes, o nome figurado (metafórico, de traslação, transferência –translatio) radica em semelhanças quanto às causas intrínsecas das coisas que se designam (assim, o exemplo é de Curtius, na Ilíada, ao dizer-se que a loucura cega a filha mais velha de Zeus, tem-se uma similitude causal intrínseca entre a deficiência da visão sensível e a da visão anímica ou, nesse caso, passional: a paixão obscurece a alma, por faltar-lhe a visão temperada das coisas, tanto quanto a deficiência do sentido externo visual cega a visão das coisas sensíveis). Outras vezes, a transferência do significado é devida a uma dada similitude das causas extrínsecas (ainda aqui se recolhe exemplo indicado por Ernst Curtius, in Literatura europeia e idade média latina. S.Paulo: Edusp, 2013: Cícero disse que as ciências e as artes são servas dos oradores, ou seja, são causas eficientes, no âmbito da retórica –que é arte liberal–, tanto quanto as servas o são das atividades servis; noutro exemplo: o nome juiz de direito aponta dois possíveis acercamentos de similitude: um, pela causa eficiente, outro, pela causa final: o da repartição do suum). Por fim, há nomes que se trasladam por semelhanças nas circunstâncias; são os nomes que se transferem ab extrinseco (S.th., I, 6, 4): p.ex., a designação de algo pelo lugar que ocupa: direito é nome atribuído, por metáfora, ao fórum; Calígula –cujo verdadeiro nome era Caio César– recebeu aquele nome (que significa botinhas) por uma referência circunstancial aos calçados –caligæ – dos soldados romanos: cf. Julius Koch, in Historia de Roma. Barcelona: Labor, 1950)

                 Não é infrequente uma relação genética do nomen com o numen: assim, o nome Adão (no hebraico Adâm) significa homem da terra (cf. Schuster e Holzammer); outros exemplos: os primeiros romanos denominavam-se quirites e seu direito, quiritário, isso porque Rômulo –um dos legendários gêmeos fundadores de Roma– passou a figurar entre os míticos deuses do paganismo, com o nome de Quirinus; a primeira cidade, Henoc, cidade utópica que Caim fundou, recebeu o nome de seu filho.

                 Noutras vezes, há uma origem religiosa nos nomes: S.Agostinho  disse que a própria linguagem teve por motivo a confissão do nome de Deus (Confessiones, V, 1). Uma das possíveis explicações para a origem do nome de Roma é a de provir de uma antiga divindade fluvial, Rumon (vidē Koch). Creu-se entre os egípcios que a divindade pagã Ptah era um fundador de nomes (Lewis Mumford. A cidade na história. São Paulo: Martins Fontes, 1998). Ainda outros exemplos: o nome Afrodite origina-se de afros espuma do deus pagão Dionísio (de onde vem que o culto dionisíaco fosse um culto conexo ao uso de drogas e com caráter hermafrodita  (“erma” + “afros”: a anulação dos princípios contrários; cf. Ennio Innocenti. La gnosi spuria. Roma: Sacra Fraternitas Aurigarum, 2009, tomo I); nas Soledades segundas de Luis de Góngora, diz-se “venía al tiempo el nieto de la espuma”, ou seja, Cupido, filho da deusa pagã Vênus (cf. Cursius).

                 Faça-se aqui ainda uma breve referência ao tema dos exônimos e endônimos, assunto de importância vistosa para as notas e os registros, designadamente para o registro civil das pessoas naturais. Um nome estrangeiro (p.ex., Iohannes ou Ticius) pode adotar-se ao modo autóctone ou nativo, de sorte que se conserve sua grafia e, muitas vezes, seu som (é o que corresponde ao âmbito dos endônimos), mas pode ocorrer que se alterem grafia e, com isso, frequentemente, o som do nome: assim, Jean Jacques Rousseau, um pensador celebrado por seus devaneios ficcionais, nomeia-se de comum, em Portugal, João Jacobo Rousseau; trata-se aí do gênero do exônimo ou, de maneira específica, de uma exantropônimo; da mesma sorte: se para designar, no Brasil, a capital da Espanha, grafamos Madrid, temos um caso de endônimo; se, diversamente, usamos o nome Madri (sem o de final), utilizamos um exônimo (de modo específico: um exotopônimo).

                 Prosseguiremos, tratando de uma forma avessa de atribuição de nomes, que é o da desconstrução ou perda de seu verdadeiro caráter significativo.