Do uso (última parte)

(da série Registros sobre registros n. 216)

                                                           Des. Ricardo Dip

 

855. Tratemos agora do objeto do direito real de uso.

 

Mais exatamente o que se quer aqui é versar acerca do objeto material do uso, ou seja, visa-se ao exame das coisas sobre as quais pode recair o direito de uso, e não o conteúdo da relação jurídica de uso, é dizer, o conteúdo do direito subjetivo de uso (a que talvez possa caber o nome objeto jurídico). Assim, o conteúdo desse direito de uso é o conjunto de poderes de uso e fruição limitada de uma coisa; e essa coisa é o objeto material do direito (cf., brevitatis studio, Manuel Domingues de Andrade, Teoria geral da relação jurídica, vol. I, n. 33).

 

A exemplo do que também constava do Código civil brasileiro de 1916, o vigente Código civil nacional, de 2002, não possui norma específica acerca do objeto material do direito de uso. No Código de Beviláqua, dizia-se que “o usuário fruirá a utilidade da coisa dada em uso…” (art. 742), e o Código atual, mais concisamente, indica: “O usuário usará da coisa…” (art. 1.412). Mas, de qual coisa –cuius rei? A solução parece remeter-se ao disposto no art. 1.413 do Código de 2002: “São aplicáveis ao uso, no que não for contrário à sua natureza, as disposições relativas ao usufruto”; e isso se completa com o recurso à primeira parte do art. 1.390 do mesmo Código: “O usufruto pode recair em um ou mais bens, móveis ou imóveis…” (não diversamente, o Código de 1916 também previa aplicarem-se ao uso as disposições relativas ao usufruto, naquilo que não fosse contrário à natureza do uso –art. 745). Já se lia, antes mesmo do advento do Código de 1916, nas lições do Conselheiro Lafayette: “O uso instituído em separado conserva os mesmos atributos que lhe são inerentes quando parte elementar do usufruto: é o próprio direito de usar tal como o tem o usufrutuário (…)”.

 

Dessa maneira, o objeto material do uso pode ser uma coisa alheia tanto imóvel, quanto móvel, de que o usuário se faz possuidor direto (cf., por muitos, Clóvis Beviláqua, Carvalho Santos, Arnaldo Rizzardo, Carlos Roberto Gonçalves). A doutrina civilista propende a não admitir que o uso recaia sobre coisa fungível ou consumível –o que se poderia designar de quase uso (p.ex., Carlos Roberto Gonçalves e Orlando Gomes, vendo nisto este último não uma impossibilidade conceitual, mas um desvio de finalidade. certo que, além da falta de salvaguarda da substantia rei, frustrar-se-ia o destino perseverante de atendimento das necessidades dos beneficiários). É explícito o Código civil argentino: “El derecho de uso puede ser establecido sobre toda especie de cosas no fungibles, cuyo goce pueda ser de alguna utilidad para el usuario” (art. 2.951/ o destaque não é do original).

 

856.   Direito –sobre coisa alheia, móvel ou imóvel–, o uso, reitere-se, é constituído intuitu personæ, com vistas a atender às necessidades do usuário e às de sua família (art. 1.412 do Código civil brasileiro de 2002).

 

Para logo e exatamente por isso tem-se, de logo, que o uso é direito instituído intuitu personæ, observou Carvalho Santos, com apoio na doutrina de Pacifici-Manzoni, “o direito de uso é indivisível [diversamente do que se passa com o usufruto], uma vez que, [sendo o uso] restrito às necessidades pessoais do usuário e de sua família, não se concebe possa ser dividido” (cf. também Lafayette “não pode ser constituído por partes em uma mesma coisa”; Orlando Gomes: “não pode ser constituído pro parte. A mesma coisa, portanto, não se grava parceladamente”).

 

Mas não é só a indivisibilidade que resulta do caráter personalíssimo do direito real de uso. senão que também dessa natureza deriva a intransmissibilidade do direito; é um direito incessível (Washington de Barros Monteiro), um direito caracterizado por sua não negociabilidade (Rui Pinto Duarte) ou inalienabilidade (Santos Justo, Caio Mário da Silva Pereira). Lê-se, nesse sentido, no art. 1.488º do Código civil português: “O usuário e o morador usuário não podem trespassar ou locar o seu direito, nem onerá-lo por qualquer modo”. Dessa nota de não ser negociável advém que não possa padecer ônus reais, nem penhorar-se (cf. art. 832 do Código de processo civil brasileiro de 1015: “Não estão sujeitos à execução os bens que a lei considera impenhoráveis ou inalienáveis”, conjugando-se com o que se diz no inciso I de seu art. 833, afirmando serem impenhoráveis: “os bens inalienáveis e os declarados, por ato voluntário, não sujeitos à execução”; todavia, com apoio em Demolombe e Duranton, sustenta Carvalho Santos a viabilidade jurídica da penhora e da hipoteca se, autorizado pelo dominus –já que podem ampliar-se, convencionalmente, os direitos do usuário–, esse usuário ceder ou locar seu direito –Comentários…, nota 4 ao art. 744 do Código de 1916).

 

Além disso, da natureza personalíssima do direito real de uso extrai-se, diversamente do que ocorre com o usufruto, que exercício do direito de uso, em princípio, não possa ceder-se: o uso “há de ser exercido pessoalmente” (Orlando Gomes), vedado o exercício “por via de terceiro” (Lafayette).

 

Esse interdito à cessão do exercício do direito de uso, entretanto, não impede a perseverança no uso que o dominus   aplicava à coisa: “…se o uso que o proprietário fazia da coisa consistia exatamente em arrendá-la, ou locá-la, ou alienar os seus frutos, pode o usuário continuar a empregá-la no mesmo mister” (Conselheiro Lafayette). A esse mesmo entendimento concorre Orlando Gomes: “(…) o direito de uso, como nota Lacerda de Almeida, consiste na faculdade de aplicar a coisa aos fins a que é originariamente destinada, aplicação que consiste em tirar das coisas todos os serviços que podem prestar. Entende-se, em consequência, que pode ser exercido, excepcionalmente, por terceiro, se o serviço que prestava ao proprietário consistia precisamente na utilização sob forma, por exemplo, de arrendamento”.

 

857. Por força do já referido art. 1.413 do Código civil brasileiro de 2002 –“São aplicáveis ao uso, no que não for contrário à sua natureza, as disposições relativas ao usufruto”–, o direito real de uso pode constituir-se tal como o usufruto, não se admitindo, contudo, a instituição do uso legal (Arnaldo Rizzardo, Orlando Gomes). O direito português possui norma específica acerca da incidência das regras do usufruto quer para a constituição, quer para a extinção do uso: “Os direitos de uso e de habitação constituem-se e extinguem-se pelos mesmos modos que o usufruto…” (art. 1.485º). Por certo, no direito brasileiro, impende registrar-se o título aquisitivo do uso referente a bem imóvel (arg. do art. 1.391 do Código civil combinado com seu art. 1.413).

 

Também pode o uso adquirir-se por usucapião. Opostamente, no direito português em vigor, no qual há norma impeditiva expressa: “Não podem adquirir-se por usucapião: a) As servidões prediais não aparentes; b) Os direitos de uso e de habitação” (art. 1.293º). Para o direito brasileiro, recruta-se da doutrina de Benedito Silvério Ribeiro: “Ao usuário é possível valer-se da prescrição aquisitiva para a constituição do direito de uso, nas mesmas condições estabelecidas para o usufruto (…)” (Tratado de usucapião, item 124). Tanto quanto para a usucapião de usufruto, é de admitir o processo extrajudicial para declarar-se a usucapião do direito de uso.

 

Da mesma sorte, quanto à extinção do direito de uso, remonte-se às causas de extinção do usufruto. Cabe, porém, observar que, assim opina Orlando Gomes –e, em seu abono, converge a doutrina de Carlos Roberto Gonçalves–, o não uso, causa de extinção do usufruto (inc. VIII do art. 1.410 do Código civil brasileiro), não é causa extintiva do direito de uso. Todavia, pode cogitar-se já não do fenômeno do não uso, mas da cessação da necessidade pessoal ou familiar que justificou a instituição, hipótese em que parece razoável considerar extinto o direito de uso (cf., nesse sentido, Santos Justo e Oliveira Ascensão).