Usufrutos sucessivo, deducto e vidual

(da série Registros sobre registros n. 211)

Des. Ricardo Dip

 

           838. Denomina-se sucessivo o usufruto instituído em benefício de uma pessoa com a cláusula de que, depois de sua morte, o direito transmita-se a terceiro.

 

Distingue-se do usufruto simultâneo em que o sucessivo se caracteriza pelo desfrute inicial da coisa por uma pessoa (o beneficiário direto) ou mais pessoas, e, com sua morte, o uso e a fruição se transferirem a terceiro, ao passo em que, no usufruto simultâneo, de logo o gozo da res se dá em concomitância por todos os cofavorecidos. Ou, em palavras de Morell: “El disfrute simultáneo consiste en aprovecharse varios individuos a un mismo tiempo de las utilidades de una sola cosa. El disfrute sucesivo consiste en aprovecharse de la cosa o derecho usufructuario una persona primero, y otras (…) después”.

 

A clave do discrimen é o momento da constituição do direito de usufruto, de maneira que a pluralidade inaugural de usufrutuários afasta o entendimento –diz acertadamente Ademar Fioranelli– de o direito de acrescer configurar uma sorte de usufruto sucessivo: a concomitância do início do uso e fruição da res por todos os favorecidos é o traço diferencial do usufruto simultâneo em relação ao sucessivo, no qual os beneficiários são chamados ao desfrute em tempo diverso do inaugural da liberalidade.

 

O usufruto sucessivo, a despeito da posição oposta no direito romano, era admitido, no Brasil, ao tempo das Ordenações filipinas (cf. Serpa Lopes, Carvalho Santos), e assim o sustentava o Conselheiro Lafayette: “(…) o testador pode deixá-lo a um indivíduo e a seus herdeiros: neste caso os herdeiros adquirem o usufruto, não do usufrutuário, mas do testador, de quem são sucessores em segundo grau” (Direito das coisas, § 109).

 

Com o advento do Código civil brasileiro de 1916, firmou-se o entendimento em que inviável o usufruto sucessivo. Clóvis Beviláqua, nesse sentido, que o usufruto está vinculado à pessoa –personæ cohoeret–, “e com ela se extingue” (comentário ao art. 739, n. 1). A vedação –embora reportável ao caráter personalíssimo do usufruto já presente no direito romano (cf. Álvaro D’Ors, Derecho romano privado, § 197)– não escapou a uma crítica, o de inclinar o usufrutuário a explorar irregularmente a coisa, já que o direito não se transmitirá a seus herdeiros (vidē  Enneccerus, Kipp e Wolff, § 118-II-1)

 

Ainda, contudo, diante dos ordenamentos jurídicos positivos em que esteja proibido o usufruto sucessivo, não se pode ladear uma questão relevante. Assim, embora, no direito alemão (cf. BGB, § 1.061), o usufruto não sobreviva à morte do usufrutuário –o que salienta a nota personalíssima do usufruto (Hedemann)–, observaram Enneccerus, Kipp e Wolff ser possível obrigar-se o proprietário da coisa, em ajuste com o usufrutuário, à outorga de novo usufruto aos herdeiros desse usufrutuário. Não se tratará, todavia, propriamente de usufruto sucessivo, porque, prosseguem esses autores, o título ocupará diverso lugar registral –é dizer, exigirá um novo registro: será sempre um outro usufruto. Ou seja, não se afrontaria, directe, o caráter de intransmissibilidade do usufruto, porque se estaria diante de um novo usufruto subordinado à condição suspensiva da morte o primeiro usufrutuário; em rigor, a hipótese, no plano subjetivo, estaria restrita a que os novos usufrutuários fossem herdeiros do beneficiário inaugural.

 

Há outros complicadores que convém examinar. Se bem, tal o observou Serpa Lopes, possa superar-se. tomando-a por não escrita, uma cláusula negocial que estabeleça o usufruto sucessivo, cabe considerar se seria possível, num só instrumento, lançarem-se dois títulos causais: o do usufruto em favor de um dado beneficiário e o de outro usufruto, submetido, como ficou dito, a condição suspensiva (a morte do usufrutuário), então instituído em benefício de terceiros –que, nada obstante, podem ou não ser herdeiros daquele beneficiário. Duas outras indagações podem desfiar-se neste capítulo: (i) admitir-se-ia, de logo, o registro desse usufruto condicional?; (ii) seria viável inscrever-se esse segundo usufruto em que os titulares do direito correspondente não estivessem determinados? Enneccerus, Kipp e Wolff referem-nos com o status de “titulares provisoriamente desconhecidos” (essa falta de determinação subjetiva não parece, por si só, inibitória do registro, bastando, a propósito, pensar na situação do fideicomisso, negócio suscetível de averbação no ofício imobiliário –cf. item 11 do inc. II do art. 167 da Lei brasileira 5.016/1973–, mas em que o fideicomissário ainda não é determinado: art. 1.952 do Código civil).

 

           839. Usufruto deducto –ou reserva de usufruto, usufruto reservado– é o que se institui, nas doações, com a retenção do desfrute da coisa pelo próprio doador.

 

Possui no latim o substantivo deductio, onis, entre outras acepções (uma das quais é a de conduzir a noiva ao domicílio conjugal), a de diminuição, subtração, desconto, compensação;  deducta é o que se abate da fortuna de um testado; e o verbo deduco também abarca os significados de retirar, diminuir, abater (cf. Torrinha). No direito romano, a deductio usufructus é a reserva ou dedução do direito real de usufruto feita exatamente por quem transmite a propriedade de uma coisa –seja pela mancipatio, seja pela in iure cessio–, excluindo-se, no entanto, a transmissão imediata do uso e da fruição dessa coisa, ambos reservados ou deduzidos em benefício do transmitente do domínio (vide Gutiérrez-Alviz).  Lê-se em Álvaro D’Ors: “La donación deducto usufructu fue una forma muy generalizada en el derecho tardío y medieval para hacer liberalidades mortis causa pero irrevocables”.

 

Já Serpa Lopes sustentara que, presente a instituição do usufruto deducto, caberia –disse-o ao tempo da vigência do Regulamento de 1939– a transcrição do ato translativo da nua propriedade e a inscrição do usufruto.

 

Ademar Fioranelli, na mesma trilha, observou ser “inviável a ideia de que a reserva do usufruto tenha ficado em mãos do proprietário, porque já detinha esse direito. O usufruto em nosso direito é constitutivo, com registro autônomo obrigatório (…), sem o que não pode valer erga omnes ainda que verse sobre mera reserva (…)” (o autor reporta-se também a posição cônsona de Narciso Orlandi Neto).

 

           840. Usufruto vidual define-se o usufruto do cônjuge viúvo sobre parte dos bens do cônjuge falecido. Pode condicionar-se, e é de todo coerente neste passo, a que o regime matrimonial de bens não seja o da comunhão universal e à preservação do estado de viuvez. Era instituto contemplado pela legislação romana tardia (com Justiniano).

 

Entre nós, foi a Lei 4.121/1962 (de 27-8; o “Estatuto da mulher casada”) que instituiu o usufruto vidual, ao acrescentar no art. 1.611 do Código civil de 1916 a norma que ali se enunciou em seu § 1º: “O cônjuge viúvo se o regime de bens do casamento não era o da comunhão universal, terá direito, enquanto durar a viuvez, ao usufruto da quarta parte dos bens do cônjuge falecido, se houver filho deste ou do casal, e à metade se não houver filhos embora sobrevivam ascendentes do de cujus”.

 

Com o advento do Código civil brasileiro de 2002 não se repetiu a norma do § 1º do art. 1.611 do Código anterior (com o texto da Lei 4.121, de 1962), não persistiu, entre nós, o instituto do usufruto vidual, substituído, em rigor, pela concorrência do cônjuge sobrevivo –com descendentes ou ascendentes– na herança do cônjuge pré-morto (arts. 1.832 e 1.837 -cf. Arnaldo Rizzardo).