(da série Registros sobre registros n. 203)
Des. Ricardo Dip
820. Tratemos agora do objeto do usufruto, ou seja, daquilo que é o conteúdo do conceito e da realidade do usufruto. Tal o veremos, esse conteúdo –ou objeto do usufruto– apresenta-se de dois modos: um, propriamente jurídico; outro, material.
O termo objeto significa à raiz (do latim obiectum, obiecti) aquilo que está posto à frente, que está “diante de”, “perante” um sujeito que tende a esse objeto; daí que o objeto seja o termo de uma intenção (intentio) de quem o conhece, apreende-o ou, quando o caso, fabrica-o (assim, nas artes produtivas).
A relação jurídica de usufruto, já o vimos, possui, no aspecto subjetivo, um sujeito agente ou ativo (o usufrutuário) e um sujeito passivo (o nu proprietário), cabendo a cada qual, respectivamente, um elemento ativo –que é a faculdade ou direito subjetivo de usar e fruir a coisa (salva rerum substantia)– e um elemento passivo: o dever de suportar o uso e desfrute da coisa pelo sujeito ativo, bem como o direito de vê-la conservada. Esses dois elementos –ativo e passivo– constituem o objeto jurídico do usufruto, vale dizer os direitos e deveres da relação usufrutuária.
Mas esses direitos e deveres têm de incidir ou recair sobre um objeto, já aqui em acepção material, e que, referindo-se ao usufruto, é uma coisa (em sentido amplo) e não uma pessoa.
Quais entes podem ser objeto material das relações jurídicas?
Pode sê-lo, para logo, uma pessoa. Hoje é pouco encontrável, no direito contemporâneo, que uma pessoa possa ser o objeto material dos direitos de crédito (ainda que se reconheça caibam dela exigir-se alguns atos: o de dar, o de não dar e o de fazer); no campo do direito relativo a menores, todavia, aponta-se o poder paternal sobre os filhos menores ao modo de uma potestade relativa de disposição sobre a pessoa do filho (da mesma sorte pode entender-se o poder tutelar -cf. Manuel Domingues de Andrade). Ao lado dessas situações em que se acentua a prevalência dos interesses das pessoas objeto dos direitos –isto é, das pessoas dos menores e dos tutelados–, houve já, entretanto, institutos jurídicos que, tendo pessoas por objeto material, atendiam antes ao interesse dos credores: assim, no direito germânico medieval, admitia-se o exercício autotutelar satisfativo do direito de crédito, mediante o direito de punho (Faustrecht) e o da apreensão seja do devedor (Einlagen), seja do fiador (vidē Brunner-von Scherin). Tema que também compreende o de o objeto material do direito ser uma pessoa é ainda o da controversa existência de direitos que alguém possuiria sobre sua própria pessoa (ex., o de exigir o respeito à sua integridade física; ou a de dispor de partes do próprio corpo: cabelos, dentes, unhas, etc.); já aqui, assinale-se, ter-se-ia de examinar, suposto se afirme a existência de um direito sobre partes do próprio corpo, o caráter real desse direito; não se discute que, reconhecido seja esse direito, haja de ser absoluto, mas sobre sua natureza real muita controvérsia haveria a enfrentar (o que não vem ao caso neste capítulo relativo ao usufruto de imóveis).
Podem ser objeto material das relações jurídicas, ainda, as coisas corpóreas e as incorpóreas –entre estas, o nome, as obras literárias, artísticas, científicas, as invenções industriais.
Coisas corpóreas definem-se –sulcando aqui as lições de Aristóteles, nas Categorias e na Metafísica– coisas divisíveis, ou, mais claramente, assim expande essa noção Gustavo Eloy Ponferrada: são coisas que (i) possuem quantidade, (ii) uma vez que se constituem de partes homogêneas, (iii) de que segue serem divisíveis: em multidão, se as partes são descontínuas (p.ex., os livros de uma biblioteca dividem-se de modo enumerável), ou em magnitude, quando as partes são contínuas (coisas mensuráveis).
Às vezes, por simplificação didática, diz-se que as coisas corpóreas, sendo entes sensíveis, são as que se captam pelos órgãos dos sentidos externos e que, depois, percepcionam-se pelos sentidos internos. Mas isto é só uma facilitação expressiva e de compreensão, porque há coisas corpóreas que não se captam pelos sentidos (p.ex., as microscópicas: vírus, bactérias, etc.). Nesse gênero de erro incorre a referência correntia à materialização de documentos eletrônicos; estes são tão materiais quanto o papel em que se “materializam”; o que caberia aí falar é em sua “papelização”.
821. Os ordenamentos jurídicos de cada país, sob o modo, pois, de condicionamentos externos moduladores de matéria determinativa e respeitando as características próprias do usufruto (é dizer, seu objeto jurídico: os direitos e deveres da relação usufrutuária), definem, ao fim, a extensão de seu objeto material.
Neste sentido, o Código civil brasileiro de 2002, em seu art. 1.390 enuncia: “O usufruto pode recair em um ou mais bens, móveis ou imóveis, em um patrimônio inteiro, ou parte deste, abrangendo-lhe, no todo ou em parte, os frutos e utilidades”. E lê-se em seu art. 1.392: “Salvo disposição em contrário, o usufruto estende-se aos acessórios da coisa e seus acrescidos”. Esses preceitos repetem, até de maneira literal, as disposições, respectivamente, dos arts. 714 e 716 de nosso Código civil anterior.
Assim, o usufruto, de acordo com o direito brasileiro posto –e em linha de continuidade com o que vigorava sob a tutela do excelente Código de 1916–, pode ter por objeto coisas móveis e imóveis, tomadas sub modo singularis (ou particular: p.ex., um determinado prédio) ou sub modo universalis (v.g., uma herança, um patrimônio); de comum, tem por objeto coisas não fungíveis, mas admite-se –quod raro accidit– o usufruto de coisas consumíveis que não se consumam com o primeiro uso (assim: Lafayette, Clóvis Beviláqua, Carvalho Santos): é o que se denomina usufruto impróprio ou quasi usus fructus (ad exempla, o de máquinas, navios, animais); pode, por fim, recair sobre coisas incorpóreas (ou imateriais), como o sejam a propriedade literária, títulos de crédito, ações, apólices de dívida pública; não apenas abrange o substancial ou principal, mas também os acessórios (cf. art. 1.392), tais, a título ilustrativo, as partes integrantes de uma casa (esta lição é de Carvalho Santos: “No usufruto de uma casa, por exemplo, tem o usufrutuário direito a gozar de todos os objetos que formam parte integrante da casa, como são as portas, janelas, etc., e ainda daqueles por que disposição de lei e vontade do proprietário são acessórios, formando com o imóvel um todo, como sejam as estátuas, espelhos, etc.”).
Entre várias questões relativas ao usufruto, duas parecem mais de perto interessar ao registro imobiliário, motivo para que se sugira sua consideração neste nosso passo.
A primeira dessas questões diz respeito à possibilidade (ou não) de o usufruto recair sobre parte ideal de uma compropriedade. Em outros termos: pode um comunheiro instituir usufruto sobre sua fração na propriedade comum?
A segunda é relativa à admissão (ou não) de ter o usufruto por objeto material direitos reais imobiliários. Reconhece-se, de comum, possa o usufruto incidir sobre créditos (o que já admitia o direito romano), mas sobre o que efetivamente pende interessante controvérsia é a admissibilidade de o usufruto pesar sobre direitos reais (p.ex., o direito de servidão, o direito de superfície, o direito de hipoteca, até mesmo o direito de usufruto –o usufruto de usufruto), a também deve examinar-se aqui a possibilidade de instituir-se usufruto sobre o exercício do direito do usufructuarius.