Embora seja inato e universal o desejo humano de conhecer as causas ao contemplar efeitos (S.th., I, 12, 1), os homens dependem sempre de algum esforço –ora maior, ora menor– para captar, primeiro, as qualidades sensíveis das coisas, e, na sequência, penetrando-as formalmente (isto é o intus legere), alcançarem-lhes a essência e, assim, repousarem na verdade. O conhecimento é, portanto, a recepção de uma forma, uma recepção formal ou objetiva que supõe e conserva uma relação cognoscível, uma alteridade: o sujeito cognoscente conhece um algo outro (alter).
Mas nem toda certeza, já se disse, é ajustada à verdade. Assim é que, do fato de todos os homens estarem voltados potencialmente a conhecer a verdade não segue que todos a conheçam em ato; o conhecimento consiste num certo efeito da verdade (S.Tomás), e a verdade –em que se converte a realidade– é um transcendental precedido dessa realidade, de maneira que só haverá um conhecimento verdadeiro, na medida em que o entendimento se molde à realidade das coisas.
Nosso tema aqui, centralmente, não é já o de disputar sobre o conceito de verdade, mas sim o do dever de buscá-la, comunicá-la e, sobretudo, respeitá-la.
Os tempos fizeram-se muito propícios à agnosia da verdade e, em seu entorno, às ideias de diálogo e heurística. Ou seja, de certa maneira estão na moda as antigas concepções dos sofistas (Protágoras, Hípias e Górgias), que ora negavam toda a verdade, ora recusavam a possibilidade de seu conhecimento, ora reduziam-na a mero valor subjetivo; mas, assim o observou muito bem Romano Amerio, um dos mais agudos pensadores de nossos tempos, se o pensamento não tem uma relação causativa com o ser –ou seja, se não o pode formalmente apreender–, então não se submete, com efeito, às leis das coisas, não é medido, senão que é a medida dessas coisas (Protágoras); a vida estaria sumariada com a força, o arbítrio e o caos.
A verdade, pelo segundo modo de sua acepção (qual seja, o da conformidade da palavra ou do gesto com a realidade ou coisa conhecida), é o que se entende por verdade moral, objeto do hábito da veracidade.
É sempre um débito moral –de grande relevo para a vida comunitária–, e suas partes integrantes são a fidelidade, inclinação da vontade à satisfação do que se promete, e a simplicidade, consistente em afastar da doblez ou dobrez –duplicidade (duplicitas, is), hipocrisia, simulação–, com que se manifesta externamente algo distinto do que realmente se pensa (cf. S.th., II-II, 109, 2, ad4um).
Vícios opostos da virtude da veracidade são, por defeito, a mentira –de que já tratamos ao largo deste capítulo– e suas categorias subsidiárias (a simulação, a hipocrisia, a jactância e a ironia), e, por excesso, a revelação de segredos (cf. Royo; também para o que segue).
A simulação é a mentira por meio de fatos (p.ex., a simulação, sob as vistas de um superior, de estar trabalhando); a hipocrisia, a simulação que se especifica por manifestar-se alguém, exteriormente, de modo diverso do que é em realidade; a jactância, atribuir-se alguém, a si próprio, excelências que não possui ou exagerar as que tenha; a ironia, que, neste passo, não é a figura de retórica, mas uma espécie de falsa humildade, com que alguém se rebaixa ante os demais, em contrário do que pensa efetivamente (v.g., negando ter bons predicados ou indicando defeitos que não tem).
A violação de segredo é o vício oposto à virtude moral de veracidade já não por sua deficiência, mas por excedê-la. Deste assunto haveremos de tratar em apartado, porque muito interessa ao exercício das funções notariais.
Ao concluir-se este passo, cabe sublinhar que a observância da veracidade, para o notário, está em muito relacionada, de uma parte, com a fé pública, e, de outra, com o princípio da imediatidade notarial.
Isto já o deixamos dito noutra parte (“Breves apontamentos sobre a fé pública notarial”) e aqui se reitera:
– “a assinação da competência notarial ratione loci −na linha da parêmia notarius unius loci non potest conficere instrumentum in alio loco− mede e concretiza a quantidade de juízo ou «jurisdição» notarial referida singularmente a cada notário, segundo um determinado âmbito geográfico, dentro em cujos marcos exerce ele sua função, com que se limita, prudentemente, a excessiva potencialidade da fé notarial, interditando-se que −por qualquer meio (incluso o eletrônico)− possa o notário atuar sem a imediatidade, rigorosamente demarcada, da captação e percepção da realidade que constitui o objeto de seu ofício em concreto”;
– “quanto ao método (…), vale muito insistir na ideia da imediatidade da relação entre o notário e a realidade sensível. A interferência de um médio −p.ex., uma transmissão eletrônica de fato não imediatamente captado pelo notário− é condição exclusora da possibilidade da fé notarial;
– “À fé notarial, afligem-na (…) (ii) a exageração dos que a recolhem sem a imediatidade relacional entre o notário e as coisas sensíveis, (…) (vi) a tecnolatria obcecada pela robotização da atividade dos notários, (vii) com a perda da consciência, enfim, da autonomia jurídico-liberal de uma função que é prudencial por excelência, mas que disto se demite nas aras distópicas de uma função servil alimentadora de mega-arquivos centralizados.”
*Por desembargador Ricardo Dip